O progresso precede a queda

O deus dos heliportos e torradeiras
Uma das maiores ilusões do nosso tempo é a crença que entende o progresso material e individual como principal ou mesmo única forma de relação com o divino. A noção torpe — herética, para um cristão primitivo — de que o acúmulo material e a promoção do status social são bênção enviadas dos céus.
O homem rico que, a certa altura da vida, pode comprar um helicóptero e construir um heliporto na sua mansão, vai crer, ainda que inconscientemente, que ele não só está no caminho certo da história e da vida, que está fazendo o bem, mas que suas novas opulentas aquisições, por fim, são especiais regalias endereçadas diretamente de deus para ele, homem rico, no caminho certo, do bem, um ser especial, escolhido pelo dedo do Criador.
Também assim tem sido com pessoas de classe média. A reles aquisição de uma torradeira é impulsionada por uma forte narrativa de justificação, calcada em dois seres: em si mesmo, merecedor do próprio esforço, e em deus, que lhe premiou.
Segundo monges e xamãs de tempos remotos, de todos os tipos, ser poupado dessa danação ficcional é, de alguma forma, estar livre e abençoado. Discurso radical, diametralmente oposto ao atual paradigma que une opulência e metafísica, fé e ganância. Afinal, o progresso material, em si mesmo, é um entrave à realização espiritual.
O cálculo equivocado do “comunismo científico”
O fracasso do comunismo é o fracasso do ateísmo num mundo maciçamente religioso, quero dizer, num mundo dominado pelo monoteísmo. Seja aliado ao catolicismo viciado em invasão, extermínio e ouro, seja pela protestantismo fissurado em trabalho e produtividade, o liberalismo, desde sempre, foi muito astuto em articular o inarticulável: massacre com fé, dinheiro com deus, opulência com santidade, acumulação material com prosperidade, exploração com paz. O comunismo, por sua vez, pecou pela falta de prudência com as tradições: supostamente científico, pragmático, objetivo, convenceu-se de que o método puro, matemático e materialista, derrubaria a miríade de crendices humanas, nossos obscurantismos teológicos etc.
Atualmente, o neoliberalismo caduca, é verdade. Mas conseguiu se manter expansivo e dominante por décadas; e se, mesmo em ruínas, desmascarado, consegue resistir de forma atroz, temos uma hipótese forte: mesclado com a teologia da prosperidade, fundido nos valores do cristianismo neopentecostal, o neoliberalismo tornou-se um rito de fé; aderido à Bíblia com uma facilidade estarrecedora, quase não há diferença entre a retórica do coach e a do pastor. Ao passo que o comunismo ateu, morto em 1990, padeceu da própria pureza metodológica, da forte imunidade que produziu contra as religiões. Não deve ressuscitar como tal: descrente de toda e qualquer metafísica, mal pode crer em si mesmo, uma vez que não acredita em fantasmas.
Velha retórica liberal
Ao ser arremessado nas brutais desigualdades do mundo atual, como a miséria e o abandono, o liberal reage com sua cartilha, seu slogan publicitário do modelo de sociedade que ele defende, qual um pastor defende sua fé e um latifundiário, suas terras: é preciso melhorar as condições de mercado, dar mais liberdade às atividades econômicas, para que as oportunidades surjam e, assim, a pobreza diminua paulatinamente. Segundo sua lógica, só há miséria onde o capitalismo não alcançou sua plena atividade. Leviano, é incapaz de reconhecer que nossa sociedade, há décadas, é tiranizada pelo mercado, que cada pedaço de terra deste planeta já foi tomado, de uma forma ou outra, pelas presas do capital.
Os liberais do século 19, ingênuos, se convenciam por meio da fé no futuro. Mas tal futuro, hoje, é passado; e não há mais futuro a prometer. Por isso o liberal contemporâneo — leviano porque arrogante —, sente-se seguro e livre para argumentar o impossível, dar um nó na lógica, perverter o bom senso, torturar o óbvio. Assim, se isenta da responsabilidade do problema que seu livre mercado produziu, e chega ao extremo ao afirmar que a existência do problema é a ausência do livre mercado. Uma retórica patriarcal, feito o deus do Antigo Testamento: só há luz onde há minha presença.
Progresso e síncope
A idealização entusiasmada do progresso do século 19 desembocou, no século 21, na materialização degenerada do progresso. Quem, há duzentos anos, pensou o progresso em termos de louvor, única via à prosperidade, máxima realização, sofreria uma síncope se pudesse presenciar, por dez minutos que seja, a realidade do centro de uma megalópole com todo o seu caos, adensamento, desigualdade.
A origem do fim da biodiversidade
O triunfo de um povo sobre o outro é o início do fim da biodiversidade. A perda maciça de biodiversidade não decorre, exclusivamente, das atividades econômicas extrativistas; antes remonta ao fenômeno inaugural do avanço e tiranização da cosmovisão europeia sobre outros territórios — a imposição e consequente pasteurização da percepção da vida. O atestado geral da catástrofe pode ser descrito de forma simples e irrefutável: quando o europeu obrigou o mundo inteiro a enxergar da forma que ele enxergava, tudo começou a ruir.
A angústia por trás do luxo
Por regra, o luxo é um desvio e uma obstrução à visão clara que devemos ter do real. Pois o luxo é um transtorno que tenta remediar, sem sucesso, temores fundamentais — como o da finitude e do vazio. Se a miséria estivesse, finalmente, desaparecido do mundo, o luxo ainda seria uma pulsão dispensável, problemática. Num mundo onde a miséria ainda assombra e mata, a manutenção de um status de luxo — cada vez mais grosseiro, para os pouquíssimos que podem usufrui-lo —, torna-se aberração, sintoma dos males de uma cultura profundamente adoecida pela ilusão do progresso, pela tara por bens materiais. Um dos resultados é o grotesco dispêndio, a desvalorização e o desencanto da matéria. A frugalidade, como modo de vida, como voto de vida, é o tratamento para nossa profunda enfermidade da opulência, do progresso e da promiscuidade material.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório, na internet, por onde espalho meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #45,
Felipe Moreno