Rebeldes com causa e a destruição dos traumas geracionais
Saudações, amizades!
Último gás de 2024! Sobreviveremos a mais um ano de horrores e delícias inerentes ao ato de existir!!
Para os amigos que gostam da minha forma de escrita e se interessam em saber de onde vem:
É assim que começa! Pior que eu era mesmo uma criança triste… O que me leva ao assunto da newsletter de hoje! Aviso de gatilho e tópicos sensíveis: saúde mental e ideação suicida.
Toda segunda-feira eu tenho terapia. Na minha cabeça, quando dá o horário da terapia e eu preciso bater o ponto de intervalo no trabalho, sobe o letreiro de “Interrompemos sua programação” ou, quando sei que os assuntos serão potencialmente devastadores, minha cabeça começa a tocar a vinheta do plantão da globo.
Há semanas em que os assuntos da terapia são bastante amenos, e eu nem sinto necessidade de ter um rolo de papel higiênico ou lencinhos na mesa. Mas há semanas em que os tópicos que eu passo a manhã inteira pensando e elaborando, levam-me a lugares que eu não esperava ir.
Essa semana, por exemplo, eu não esperava que o assunto fosse basicamente sobre as heranças emocionais e traumas geracionais que carregamos. Comecei falando sobre como me causa frustração que minha mãe, apesar de sofrer com problemas de saúde mental, recusa-se a buscar tratamento e ajuda profissional, em parte porque, para a geração dela, ainda existe um tabu muito grande em relação à medicação e terapia, em parte porque ela já teve experiências ruins com tratamentos.
Minha mãe passou muitos anos da minha infância medicada com diazepam, uma remédio forte e que deveria ser usada por um curto período de tempo, para estabilizar crises intensas, por conta das diversas ramificações negativas do uso constante. Quando um psiquiatra finalmente fez a coisa certa, ela passou por um processo de desmame dessa medicação que, mesmo feito aos poucos, foi bastante difícil. Para mim, era como assistir uma pessoa passar por todas as etapas de uma doença que não podia ser medicada.
Eu herdei esse medo de passar por psiquiatra, de precisar tomar medicação e, mesmo no começo da minha jornada de tratamento, eu só aceitei começar a tomar remédio porque o psiquiatra me disse que seria por apenas seis meses. 7 anos depois, ainda tomo medicação, algumas a mais inclusive. Em todo esse tempo, eu tive a sorte de ser tratada como um ser humano em sofrimento, não como um problema com o qual as pessoas ao meu redor lidam. Meu tratamento foi pensado para me ajudar, não para me tornar tolerável para os outros. Acho que quando minha mãe foi medicada, não era no sentido de ajudá-la, mas de torná-la dócil, gerenciável, o que é terrível de se imaginar, né?
Minha família tem um histórico extenso com a psiquiatria e tratamentos. Uma vez, testemunhei minha tia ser levada de ambulância depois de um surto. Estávamos apenas eu, minha tia e meu irmão em casa, minha mãe estava trabalhando. Lembro-me de ligar chorando para a minha mãe, sem entender o que estava acontecendo com a minha tia, e minha mãe chamou a ambulância e me mandou levar meu irmão para a casa de uma amiga da família. A ambulância passou por mim e pelo meu irmão enquanto caminhávamos. Na época, eu não sabia o que era ideação suicida, mas era esse o motivo pelo qual minha tia foi hospitalizada. No começo dos anos 2000, a luta antimanicomial, que começara décadas antes e ganhara força com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), está muito relacionada à forma como minhas tias, minha mãe e minha avó entendem tratamentos e saúde mental, assim como a forma como elas foram tratadas pelo sistema, e a o modo como eu enxergo todo esse processo sou tratada pelos médicos que passei.
Em 2001,foi sancionada a lei que criou os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que hoje têm papel central no acesso ao cuidado para pessoas que precisam de tratamentos relacionados à saúde mental. Esse marco é também importante para pensar como, desde então, a maneira como as pessoas entendem problemas de saúde mental passou por uma grande mudança. Um paradigma de tratamento muito mais humanizado, muito mais pautado nas pessoas que buscam ajuda e não nas relações de cuidado dos outros para com o indivíduo em sofrimento.
Como eu disse, a relação da minha família com tratamentos psiquiátricos, antes de chegar a minha vez, era no sentido de fazer com que as pessoas deixem de ser um problema para a sociedade, para suas famílias e cuidadores.
Depois de isso ser assunto da sessão de terapia, passei a perceber a resistência da minha mãe em relação ao tratamento como um retrato de traumas profundos, não apenas vividos por ela, mas testemunhados e herdados de minha avó, e provavelmente de todas as mulheres consideradas desviantes demais e, por isso, hospitalizadas. É uma dor deslocada no tempo, uma marca de nascença na psique.
Eu imagino que, quando minha mãe soube que eu precisaria de cuidados psiquiátricos, ela deve ter sentido um medo que vem de um lugar não mapeado, de uma vida que não é a nossa, mas que nos é tão conhecida. Os avanços de uma luta constante, transmutada, garantiu que eu seria cuidada, que eu seria humanizada e poderia advogar por mim, pelo meu bem-estar.
Na terapia, eu falei, principalmente, que eu gostaria que minha mãe pudesse me ver como um exemplo, sabe? Eu estou sendo cuidada, estou advogando por mim e posso ajudá-la nesse processo.
Também falei que falar sobre isso com a minha mãe me coloca de volta nas memórias e vivências da versão de mim, ainda criança, que não podia fazer muito pela minha mãe, que não podia retribuir o cuidado e a proteção. Não é que eu quero virar mãe da minha mãe, veja bem, mas quero poder ajudá-la a desbravar esse caminho que antes era repleto de espinhos, escuridão e hostilidade. O mundo é complicado e viver é difícil, mas ela não precisa mais passar sozinha pelos momentos mais difíceis.
De mãos dadas, vamos entendo uma a outra e completando as lacunas preenchidas pela dor e pelo medo com o amor e cuidado que precisamos e temos direito.
PS: se você ou alguém que você conhece precisa de ajuda psiquiátrica emergencial, o Hospital das Clínicas é uma boa opção. Apesar de demorar, o Hospital oferece pronto atendimento psiquiátrico e, todas as vezes que estive por lá, sempre fui bem tratada e acolhida.
Um abraço fresquinho (calor demais para um abraço quentinho) <3
Com carinho,
Jaci.