O tempo é uma ilusão que faz as coisas terem sentido
Saudações, amizades! Espero que esse e-mail te encontre bem, em um lugar confortável, rodeades de amor e carinho!
Estou experimentando com a ideia de só escrever de acordo com aquilo que estou sentindo. Digam-me se é algo interessante para vocês, leitores.
O tema de hoje é um pouco mais delicado, falarei um pouco sobre luto, saúde mental e suicídio, então, caso esses sejam temas com os quais você não consegue lidar, encontrar-lhe-ei em uma próxima!
Trilha sonora para essa leitura: https://open.spotify.com/intl-pt/track/5nPjPq6DtF2F9TeSPW27Ga?si=62e92cdec5ba4aa4
Não sei bem por onde começar a falar sobre isso, estou aqui, sentada em minha poltrona, depois de tomar meus remédios, na esperança de que as palavras do universo encontrem-se com as minhas e, no entrelaçar, deem conta dessa sensação esquisita entre o vazio da ausência e o inundar inevitável da presença e da existência.
Eu perdi duas grandes amizades na luta do viver. Eu não acho que eles perderam a luta, veja bem, eu entendo que quando o cansaço é grande demais e a luta parece infinita, e o seu coração de madeira está exausto, a ideia do descanso eterno, onde quer que seja, é um tsunami, uma corrente forte demais para resistir. Eu sei que eles tentaram e que ficaram aqui tempo suficiente para deixar uma marca no mundo, para deixar muitas fotos nos álbuns de polaroid que existem somente na memória.
Meu amigo Guga morreu em 2019, eu me lembro de receber a ligação da Stefs, de não acreditar, de acreditar, de precisar terminar de arrumar para ir trabalhar e chorar o dia inteiro, no caminho de ida, de volta, durante a prova de Espanhol, porque a vida continua. A minha pelo menos. Eu gosto de pensar que minha vida continua por ele também, sabe? Ele amava The Umbrella Academy, me apresentou os quadrinhos e me disse que os quadrinhos foram escritos pelo Gerard Way. Eu assisti a última temporada de The Umbrella Academy e achei bem ruim, mas foi uma experiência boa, imaginei a nossa conversa, na minha cabeça ele também odiou a temporada, mas ele teria argumentos mais sólidos para criticar, porque ele realmente leu muitos dos quadrinhos e também gostava muito de todas as coisas que envolvem audiovisual e histórias sendo contadas. Eu imagino também, que por amar histórias, ele ficaria feliz em saber que faz parte de muitas, que as memórias dele são o filme que eu revejo quando fechos os olhos. Para mim, a saudade é uma versão de todos nós que conhecemos o Guga, ávidos por ouvir as aventuras e desventuras desse personagem tão ilustre, com quem vimos muitas estações, muitas alegrias, tantos desastres e descobertas. E por falar em descobertas, por vezes eu me perguntei se um dia saberia a receita para lidar com a dualidade de conhecer, amar e perder alguém. Nem se eu fosse o Indiana Jones dos sentimentos, conseguiria encontrar essa relíquia tão desejada. Eu não sou o Indiana Jones, não sou arqueóloga, mas sinto que sou curadora do museu das nossas lembranças e em vez de conquistar o luto, eu seguro a mão dele e faço um tour pelas nossas relíquias, pelas memórias boas, pelas ruins, por todas as coisas que fazem o Guga, ou qualquer pessoa, eu acho, ser quem são e significar o que significam para nós. Pensar no luto como um pequeno ser caminhando de mãos dadas faz ele ser menos medonho. Como você pode ver, eu gosto muito de imaginar, porque no fim das contas todas as imagens me fazem sentir que nós nunca realmente perdemos ninguém. As pessoas ainda existem, só mudam de forma. É um pouco como a regeneração em Doctor Who, nós companions assistimos a metamorfose e, de braços abertos, damos boas-vindas à nova forma da pessoa que amamos, e guardamos no coração as memórias anteriores. Se a vida é energia, faz sentido pensar que não desaparece, apenas se transforma.
A outra pessoa que faleceu foi a Marina, em setembro desse ano. Minha história com a Marina é bastante complexa, nos meses anteriores à sua morte, nós não estávamos mais nos falando. Quem acompanhou, sabe os motivos e sabe também que era algo inevitável. É um misto de alegria e tristeza o museu das nossas memórias, porque tem coisas boas, tem coisas ruins e coisas que me traumatizaram também. Eu sei que ela me amava e eu a amava também, mas no fim das contas nossos caminhos nos levaram a lugares diferentes.
Eu tenho sonhado muito com ela ultimamente e acho que faz parte do processo do luto. Em alguns sonhos, parece que eu estou revivendo os momentos que forjaram nossa amizade, os esquentas pré festa, o processo de escolher looks para sair (ela era uma pessoa muito estilosa). Em outros sonhos, que parecem mais pesadelos, eu assisto as brigas, as lembranças ruins. Isso que me fez tentar escrever essa mensagem, para ver se me ajuda. Eu ainda não tinha colocado em palavras a existência da Marina em mim. Ao mesmo tempo que ela foi a pessoa que me ajudou a entender a minha sexualidade, porque ela já tinha passado por esse processo e sabia como podia ser confuso e solitário, ela também foi a pessoa que me causou crises de pânico e ansiedade. Eu acho que ela era a representação de que bom e ruim não são coisas opostas, são forças que coexistem em todos nós. Eu sei que às vezes ela não estava no controle, mas não posso ignorar os danos causados. Ela era um pouco como uma força da natureza, imparável. Vivia tudo com muita intensidade e isso é uma coisa que eu sempre admirei sobre ela. Com todos os medos e incertezas, ela sempre seguia o próprio caminho por mais difícil que fosse, isso é algo que levo comigo. De todas as coisas que eu gostaria que ela levasse, onde quer que ela esteja, é que ela era minha amiga e eu amiga dela e, mesmo no fim da amizade, eu desejei o melhor para ela. Acho que o luto por uma pessoa tão complexa, tão forte e intensa, não poderia ser senão um sentimento caótico. O museu da Marina é mais como uma experiência imersiva, uma exposição de peças vivas, todas elas. Sei que vai levar um tempo para me acostumar com esse espaço, com essa energia que me habita. Mas sou feliz de tê-las todas, as memórias, em mim. Boas ou ruins, são minhas, nossas.
Quando paramos de nos falar, meses antes da Marina morrer, eu tinha muitas polaroids nossas no quadro magnético que fica na sala de casa. Era bastante doloroso passar por lá e ver a imagem dela, mas ao mesmo tempo eu seria incapaz de destruir ou me livrar dessas fotos, em parte porque tenho apego emocional à coisa física, em parte porque jamais negarei o amor que nos uniu nessa vida, então pedi que nosso amigo Yudi guardasse-as para mim, até o momento que eu me sentisse pronta para tê-las de volta. Não sei quando me sentirei pronta ou forte o bastante para resgatá-las, mas por agora me basta saber que essas fotos estão seguras.
É difícil lidar com a ausência física de alguém que amamos, é difícil lidar também com a presença opressora do sentimento de querê-las de volta, mais uma chance para dizer algo que não foi dito, para mostrar nossas conquistas e vitórias, para pedir conselho e encontrar abrigo. Como boa imaginadora, eu fecho os olhos e vejo o Guga, a Marina, sentados na raiz da árvore que regamos e criamos juntos, eu sento perto e conto todas as minhas novas histórias. No meu coração, eles sabem tudo quando se transformam. Sabem o segredo da vida e da morte, sabem o que virá para nós. No meu coração, eles vivem, sempre pulsantes, sempre presentes.
Se você chegou até aqui, obrigada por me acompanhar nessa jornada, você consegue contar quantas metáforas eu coloquei aqui? De certa forma, todas elas são ligadas à natureza, porque para mim é a natureza a fonte da vida e o destino final para nós.
Um abraço apertado e especial para todos vocês!
Até a próxima.
Com carinho,
Jaci.