Memórias
história inventada (inspirada em alguns relatos familiares)
Minha lembrança mais antiga não é uma narrativa completa, mas flashes de uma realidade distante. Eu havia quebrado o braço, não sei como exatamente, mas quando fecho os olhos consigo ver o corredor de paredes brancas do hospital, repleto de luzes também brancas que, refletidas, criam na memória uma sensação surrealista. Todas as pessoas parecem grandes demais, entendo que é porque nessa memória eu sou muito pequena. Um homem alto segura minha mão (a do braço não quebrado), depois eu vejo esse homem me ajudando a colocar meu braço machucado no que eu penso ser uma máquina de raio-x. Recordo-me da sensação de medo porque foi um movimento dolorido, mas necessário, como dizia o homem alto. Grande como era, devia saber o que estava dizendo. Em algum lugar, meu reflexo mostra um vestido azul bebê repleto de desenhos de passarinhos e outras coisas fofas que não sei bem dizer o que são. Segundo minha mãe, esse vestido iniciou uma grande saga na minha vida, porque depois de ver uma estampa tão rica, nunca mais quis usar roupas que não fossem cheias de desenhos e detalhes. Assim, o que eu imagino ser minha memória mais antiga, entrelaça-se com as memórias de minha mãe.
Minha mãe não sabia exatamente como eu quebrei o braço, porque ela não estava presente no momento, mas eu sei que era ela comigo no hospital. Na imagem que se forma em minha mente, eu não a vejo no corredor, nem na sala de raio-x, mas sinto sua presença vigilante caminhando comigo.
Nessa época, e muito antes, minha família era bem pobre, como muitas famílias no Brasil. Minha mãe trabalhava todos os dias em uma loja de 1,99, e quem cuidava de mim eram minha avó e minhas tias mais novas, que ajudavam também a cuidar de tantas outras crianças que minha avó tomava conta, era a forma que ela encontrou para ter algum dinheiro e fazer o mínimo por seus filhos e filhas. Ao longo dos anos, eu vi muitas fotos dessa época nos milhares de álbuns guardados no alto do guarda-roupas no quarto da minha avó. Com um misto de saudosismo e tristeza, minha avó nomeava todas as crianças que, também filhas de mães que precisavam trabalhar fora para garantir a sobrevivência, passaram a maior parte da primeira infância na casa de portão vinho, na esquina de uma das ruas perto do campinho de areia. Pergunto-me como estão essas crianças, agora crescidas, criadas na dureza da vida em um bairro periférico. Será que as mães ainda estão correndo em seus empregos de gente adulta? Pensando em garantir o básico, esperando que, no futuro, suas crianças tenham condições melhores?
Minha avó manteve contato com algumas das famílias por certo tempo; mas, como a maioria das coisas físicas e metafísicas, esse elo real não aguentou o teste do espaço e do tempo. Quando nos mudamos de cidade, às pressas, ninguém sabia. Nossos vizinhos e amigos de muitos anos acordaram em um dia do ano de 1999 e minha família havia desaparecido, sem presságios e sem avisos, sem tempo humanamente possível para mover tantas pessoas e suas coisas. Impossível ou não, foi o que aconteceu. E os vizinhos deixados, mas não esquecidos, passaram a ser bibelôs na estante das memórias familiares. Anos depois, voltaríamos a visitar aquela casa e aquele bairro, e minha avó recontaria a história do ano que mudou nossas vidas, 1999.
continua… se acharem uma leitura interessante.
Com carinho,
Jaci.