Em tempos difíceis, a poesia me move
“Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas, ficarão.” (Carlos Drummond de Andrade, Memória).
Há um tempo atrás, quando as coisas estavam especialmente difíceis, eu e minha amiga Cath fomos fazer cerâmica em uma praça perto de onde moramos. Foi minha primeira vez naquele lugar. É uma praça como qualquer outra, alguns bancos, um gramado verde, árvores, um pequeno lago repleto de famílias de patos. Dá para ver as vaquinhas pastando na fazenda e admirar o céu azul. Nesse dia, conversamos sobre a vida, mas também estivemos presentes naquele momento, por meio do ato de criar coisas imperfeitas com materiais novos e habilidades em desenvolvimento. Mais que isso, estivemos presentes no silêncio da cumplicidade entre duas pessoas fincando amarras nesse mundo e construindo sentidos para a existência. Estávamos deitadas em cima de um tapete estendido no gramado, observando o reflexo da água dançando na copa das árvores. Naquele momento, tive a sensação de que jamais me sentiria em paz dessa forma novamente. Não porque seria incapaz de estar em paz, mas porque, naqueles minutos específicos, eu senti minha conexão com as pessoas que amo e com o mundo em que habito. Senti medo de que aquela sensação escapasse e eu nunca mais conseguisse encontrá-la. Eu poderia ficar para sempre naqueles instantes. No entanto, assim como a água em seu balé com o vento, a vida está sempre em movimento, mesmo que às vezes nós não estejamos preparados para assumir a direção.
Aos 15 anos, o Drummond me ensinou um verbo novo que me acompanha desde então, olvidar, que significa perder a memória, não ser capaz de evocar uma lembrança, esquecer-se. Essa palavra aparece no primeiro verso da segunda estrofe do poema que eu citei no começo, “nada pode o olvido/ contra o sem sentido/ apelo do não”. Em meio a tantos sentimentos, tantas luzes e sons, tantas responsabilidades e decisões, acabamos por esquecer a sensação de paz dos momentos em que conseguimos parar e apreciar o mundo ao nosso redor, apreciar a nós mesmos e ao que fazemos, sentimos e causamos nesse mundo. O sofrimento parece nunca ir embora porque é um sentimento pulsante, porque está por todos os lugares por onde caminhamos regularmente, está na TV, está no noticiário, nas redes sociais, mas ele não é a única coisa que existe. Nós acabamos por esquecer as coisas boas, os intervalos, e talvez seja por isso que, enquanto eu estava sentada no silêncio confortável de uma amizade, da cumplicidade na conexão com o mundo, eu tive medo de perder aquela sensação, de olvidá-la. É essa a razão pela qual esse poema do Drummond, em específico, Memória, eu sei de cor, porque me ajuda a lembrar ativamente, não só dos versos e do ritmo, mas de todos os momentos que me causam a mesma sensação que tive quando li esse poema pela primeira vez.
Todas as coisas são passageiras, a maioria deixa marcas profundas que acabam por mudar a trajetória da nossa vida. Eu estou dando alguns versos, mas eventualmente mostrarei o poema inteiro, mas o Drummond abre seu poema com “amar o perdido/ deixa confundido este coração”, e, na minha perspectiva, é exatamente o que torna o amor que temos uma força tão pungente e devastadora, mas também que nos move e nos molda. Mesmo que todas as coisas e pessoas que amamos sejam passageiras, já estejam perdidas mesmo antes de encontrá-las, temos a coragem necessária para abrir o coração e amar, com ou sem medo, e mesmo no fim, nos mantemos abertos, porque é esse o ritmo. É a valsa finita em um salão vasto, dançamos as músicas mais lindas, as mais tristes, as mais avassaladoras, e seguimos em frente, sem saber bem qual é a próxima canção, não perdidos na imensidão, mas tentando encontrar o compasso e conduzir nossa própria versão dos passos.
É como adotar e aprender a amar um pet, e aprender que, embora o tempo de vida deles seja menor que o nosso, cada segundo que eles passam conosco é precioso e, mesmo muito tempo depois que eles partirem, continuarão em nossas memórias, ou ter amigos e familiares que se vão, porque, no fim, é como diz Drummond:
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas, ficarão.
Não sei ao certo o propósito desse texto, mas ele está passeando há alguns dias na minha cabeça. Talvez não tenha um propósito agora, talvez signifique algo daqui um tempo. Ou, talvez seja algo que algum de vocês precisem ler.
Há dias em que é difícil manter a esperança e não ceder ao impulso de fechar todas as portas e se esconder do mundo… por isso, é bom lembrar de todos os momentos em que nos sentimos conectados, esperançosos, e abertos a dar e receber o amor que precisamos, para que essa luz, esse quentinho que nos faz continuar, se faça sempre presente.
Um abraço quentinho para todos e um abraço especialmente apertado para quem precisar.
Amo vocês!
Com carinho,
Jaci.