[Abas Abertas #14] Abestalhado
Completei 46 anos por esses dias. A partir de uma certa idade, aniversários se tornam um gatilho para reflexões sobre a morte, o universo e tudo o mais. Olhando em volta, constato que as pessoas longevas vivem mais ou menos até os 90 anos. Portanto, se tudo der certo, acabei de passar da metade da minha vida.
Quando jovem, cada aniversário era um passo na direção dos meus sonhos. O futuro parecia seguir o lema olímpico – citius, altius, fortius. Concretizei uma proporção dos meus planos acima da média da população, acredito, e devo agradecer à minha boa fortuna. Ao mesmo tempo, cada vez compreendo melhor a letra de Ouro de tolo, do inigualável Raul Seixas:
Eu devia estar contente
Por ter conseguido tudo o que eu quis
Mas confesso, abestalhado
Que eu estou decepcionado
Assim como o bardo baiano, me vejo estupefato, porque intelectualmente a insatisfação com o sucesso não deveria ser nenhuma surpresa para mim, mas, entretanto, ela me pegou. Talvez Raulzito tenha usado a palavra “abestalhado” na letra porque, sendo uma pessoa reflexiva e interessada nas questões do espírito, também esperasse lidar um pouco melhor com a crise de meia idade.
Passei boa parte da minha juventude lendo Epiteto, Laozi, Schopenhauer, Erich Fromm, Chögyam Trungpa, entre outros filósofos da ética menos cotados (informe-se!). Como mencionei na edição deste Abas Abertas em que fiz uma crítica a Jordan Peterson, sempre tive um grande interesse pelo eudemonismo. Deveria ter aprendido a não ter expectativas, mas agora confesso, abestalhado, que passei todos esses anos acreditando na leitura como vacina contra a decepção.
Minhas emoções correntes são um lembrete de que a maioria das ideias só fazem sentido quando vivenciadas. A linguagem é uma representação muito pobre da realidade.
Ainda assim, bons conselhos ajudam um pouco. Graças aos avisos dos sábios, ainda não comprometi minha renda pelos próximos 20 anos comprando uma Harley Davidson, nem larguei minha carreira como funcionário público para ir plantar batatas em São Francisco de Paula, muito menos me viciei em apostas esportivas. Todavia, agora entendo muito melhor quem faz essas coisas.
Chegar aos 46 anos sentado no trono de um apartamento quitado é algo inalcançável para a maioria das pessoas, mas é o único ponto de vista do qual posso falar, e, a partir dele, lhes digo, pode ser difícil enxergar um futuro entusiasmante. O sucesso é bom, mas também nos enreda em compromissos dos quais parece impossível se desvencilhar. A cada escolha acertada ao longo da primeira metade da vida, a estrada adiante se estreita.
Ou, pelo menos, essa é a impressão.
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“O homem, comparado a outros animais, tem a capacidade de encontrar um propósito. Ou não. Se você não o encontrar, o mercado o fará pagar contas pelo resto da vida.”
Por falar em eudemonismo, este é apenas um dos muitos trechos excelentes da entrevista de Pepe Mujica ao New York Times. O ex-presidente do Uruguai, moribundo devido à idade avançada e a um câncer no esôfago, oferece muitos conselhos sobre como viver uma vida plena e tem autoridade para o fazer, pois experimentou o que de melhor e pior ela tem a oferecer.
Passou 15 anos preso, vários deles em uma solitária nojenta, mas viu a ditadura cair e ganhou a oportunidade de liderar seu país. Como todo presidente, teve contato com as tentações do poder e da riqueza ao redor do mundo, mas nada disso o interessou. Vivenciou as emoções de assaltar bancos quando era guerrilheiro, mas também a vida simples e pacata de agricultor. Amou sua esposa, amou seu cachorro aleijado e ama o ser humano. Mujica está aí para nos mostrar que tem tudo quem tem um matecito nas mãos.
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Cada um tem sua versão pessoal do além-vida. A maioria, acho, desenvolve esse imaginário quando ainda é criança e começa a ouvir falar no assunto. Mesmo depois de expostos a religiões organizadas, no íntimo a expectativa sobre o outro lado é muito particular. Quando penso nisso, no fundo ainda desejo o mesmo “céu” que imaginava na infância. Meu paraíso era um estado no qual todo o conhecimento do universo estaria à disposição e eu receberia respostas para todas as perguntas. Não sei se acredito em vida após a morte e, caso acredite, seria na versão budista, bem diferente da minha expectativa infantil. Ainda assim, como seria satisfatória uma eternidade dedicada a descobrir todos os mistérios das ciências e das religiões!
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Sete anos após a reforma trabalhista, 70% dos informais querem carteira assinada.
Essa é uma daquelas manchetes que dispensam comentários.
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Poucas coisas são mais satisfatórias do que assistir a políticos de extrema-direita brigando entre si.
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O bloqueio do Twitter pelo STF alvoroçou os primeiro-emendistas, isto é, os brasileiros para os quais uma interpretação específica da Constituição dos Estados Unidos deveria valer em nosso país. O primeiro-emendismo ianque é bem representado por personagens como Glenn Greenwald, para quem a liberdade de expressão é um direito absoluto. Os EUA conseguiram exportar essa perspectiva para vários outros países, incluindo o Brasil, com direito a tísicos de bigodinho imperial publicando opiniões como "antes de mais nada, a decisão de Moraes viola a primeira emenda da Constituição americana".
A embaixada estadunidense no Brasil, embora não tenha criticado a decisão, emitiu nota afirmando que "a liberdade de expressão é um pilar fundamental em uma democracia saudável". Estão fazendo a parte deles, é claro, ao defender os interesses de uma empresa com sede nos EUA. Entretanto, o caso nada tem a ver com liberdade de expressão. O bloqueio do Twitter por Alexandre de Moraes é uma questão de soberania nacional, pois seu proprietário vem desrespeitando determinações judiciais recorrentemente, inclusive por meio de chicanas infantis, como demitir todos os funcionários para evitar receber intimações.
Em primeiro lugar, é preciso manter no horizonte o fato de que Musk não apenas se recusa a seguir as leis brasileiras, mas faz isso para apoiar outros criminosos que tentaram dar um golpe de estado em janeiro de 2023. Além disso, é um bilionário subscritor das ideologias mais perniciosas da história humana, que pretende usar sua riqueza para impor essa visão pervertida sobre o mundo inteiro.
Em segundo lugar, cabe aos críticos se fazerem a seguinte pergunta: quem são as pessoas cujo direito à liberdade de expressão está sendo violado pelo STF? A decisão de Moraes, chancelada hoje por outros ministros do Supremo, está bloqueando um canal de comunicação, mas não proibindo qualquer pessoa de se manifestar sobre qualquer coisa. O direito à liberdade de expressão não implica no direito de usar um determinado veículo. Exagerando um pouco para fins didáticos: se esse direito fosse absoluto, o Estado deveria garantir uma plataforma de difusão em massa de mensagens para cada cidadão.
Embora não possam publicar suas opiniões no Twitter, os brasileiros ainda podem o fazer no Instagram, no YouTube, no Telegram, no TikTok ou no BlueSky, para onde muita gente migrou. Ou podem subir no coreto da praça e fazer um discurso. Ninguém está sendo impedido de se expressar.
A medida do STF foi criticada em editorial pela The Economist – aparentemente porque os redatores não se deram o trabalho de estudar o caso e entenderam se tratar de censura. Ao mesmo tempo, os editorialistas da revista autoproclamada defensora da ideologia liberal consideram positiva a lei casuística aprovada por Washington para banir o TikTok, pela única razão de se tratar de uma empresa com sede na China. Somada com a nota da Embaixada dos EUA e outras manifestações de gringos no debate sobre o caso, resta a conclusão de que, para o Norte, os países do Sul não têm direito à soberania.
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O YouTube sugeriu este fascinante documentário sobre o festival de 2,5 mil anos de fundação do império persa, ocasião que pode ser considerada o Baile da Ilha Fiscal do reinado de Reza Pahlavi. O Xá reuniu presidentes, primeiros-ministros e monarcas de mais de setenta nações – segundo o filme, um número jamais superado – nas ruínas de Persépolis durante três dias. Árvores e pássaros foram importados da Europa e distribuídos ao redor de um glamping no formato de estrela. Havia um campo de golfe. Enquanto isso, as fronteiras eram fechadas e ativistas políticos eram torturados nas prisões. Pahlavi pretendia se legitimar como sucessor de Ciro, O Grande, mas terminou por multiplicar a insatisfação do povo iraniano com seu governo.
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Nas últimas edições de Abas Abertas, venho recomendando boletins por correio eletrônico que costumo ler. Desta vez, minha indicação é Texto Sobre Tela, produzida pelo pioneiro da internet brasileira e bodhisattva Eduardo Fernandes, também conhecido como Eduf. A periodicidade é semanal quando ele não está em retiro na montanha ou coisa do gênero e o autor trata em geral do impacto da tecnologia sobre a vida cotidiana, muitas vezes a partir de uma perspectiva budista.
Por Marcelo Träsel
Rua Ramiro Barcelos, 2705 - Porto Alegre, Brasil