Fábrica Sombria - Not to Scale no TBA/Brotéria
Uma página ou tela em branco. Tantas possibilidades.
Sunday in the Park with George
A peça Not to Scale de Ant Hampton e Tim Etchells começa não com uma mas com duas páginas em branco: uma para cada participante neste espectáculo onde não há diferença entre público e intérpretes. Para acontecer, precisa apenas de alguma tecnologia antiga: folhas de papel; lápis e borrachas; iPods com auscultadores (com a voz da Terry O’Connor dos Forced Entertainment na versão inglesa, ou da Joana Bárcia na versão portuguesa); e duas pessoas. Da interacção destes elementos vão aparecer e desaparecer cenas que se lêem como frases, riscos que condenam e que salvam, pássaros falantes, retratos indistinguíveis dos originais, fogo (de artifício?), olhos que não dormem. E tudo isto sem que seja preciso saber desenhar: basta ouvir e seguir as instruções.
A anterior colaboração destes artistas, The Quiet Volume, apresentada pela Culturgest/Alkantara há dez anos na Bilioteca Nacional, era uma pequena obra-prima (pequena por causa da escala: também era para duas pessoas de cada vez). Perdíamo-nos na leitura, como quem se embrenha num livro de onde não quer sair, mas também como quem vê pouco a pouco a linguagem fugir-lhe, instável, debaixo dos olhos.
E, tal como agora em Not to Scale, a página era um palco. Que não haja dúvidas: por mais que se cruzem outras artes, é sempre de qualquer coisa performativa que se trata, uma tarefa executada e testemunhada pelo corpo em directo, uma coreografia a dois. Not to Scale é talvez mais minimal, mas também mais lúdico. Como num espectáculo dos Forced Entertainment, as histórias interrompem-se e transformam-se umas nas outras, tudo sempre à beira de descambar. Estamos talvez numa espécie de infância, com medo da noite que aí vem: invenção e destruição são lados diferentes da mesma folha de papel.
Fios condutores: como recentemente na Conferência de Ausentes de Rimini Protokoll, os intérpretes são espectadores que seguem instruções; como em Terrestrial Salvation de Tim Crouch, o mundo nasce do papel; como em She gave it to me I got it from her de Clara Amaral, a dança é a das mãos que viram páginas; e como em The Talent de Action Hero e Deborah Pearson, daqui a umas semanas no TBA, no princípio era a voz.
Para termos luz do dia, descemos a rua e pedimos à Brotéria que nos acolhesse. Estaremos lá até 6 de Abril (bilhetes aqui). E em simultâneo a peça apresenta-se em Viseu, no Viriato, até dia 2. A sério, não percam.
Abraços,
Francisco