Fábrica Sombria — Quase TBA
[Fábrica Sombria é o nome de um blogue que tive em tempos. A expressão vem de um argumento não filmado de Jacques Rivette, onde é atribuída a Sarah Bernhardt para referir o lugar onde “a actriz lapida os seus diamantes na penumbra”. Talvez também possa servir, nesta newsletter pessoal, para falar do que vier a acontecer no nº 1A da Rua Tenente Raúl Cascais.]
O Teatro do Bairro Alto reabre daqui a uns meses e será um novo teatro municipal em Lisboa. Entretanto, fomos começando. Primeiro online, com as fotografias de André Cepeda, os vídeos de Sara Morais e Pedro Gancho e o podcast Dito e Feito (com três peças sonoras encomendadas a Lígia Soares, João Estevens e Mafalda Miranda Jacinto e Diana Policarpo); agora na cidade, com os seis objectos do programa (Quase) Teatro do Bairro Alto.
O Quase TBA já vai a meio. Não é portanto a pior altura para descrever alguns dos fios condutores que nos ajudaram a compor este programa, e outros de que só agora começamos a dar-nos conta. Se é de fios que se trata, podemos esticar um na vertical e outro na horizontal.
O primeiro fala da cidade, entre o subterrâneo e o miradouro (na Poética do Espaço, Bachelard fala da casa distribuída entre a cave e o sótão). A ilusão de que a cidade vista de cima nos permite uma percepção total foi desmontada no percurso performativo Partituras para ir de Joana Braga; e Lookout de Andy Field (para ver no próximo fim-de-semana) transfigura o postal ilustrado de Lisboa acrescentando-lhe visões utópicas e catastrofistas. Estas imagens do futuro são criadas por um grupo de crianças entre os 9 e os 10 anos com a ajuda de um artista britânico à beira-Brexit; do alto do Centro Europeu Jean Monnet, à sombra da bandeira europeia. Bilhetes aqui.
No outro extremo, metendo as mãos na terra, a peça inaugural deste programa (Gardens Speak de Tania El Khoury, no Teatro da Politécnica) era aparentemente sobre o passado: os primeiros anos da insurreição na Síria, violentamente esmagada pelo regime de Assad, contados através das histórias de dez pessoas enterradas em quintais particulares e jardins públicos. Mas, como se percebia no artigo de Gonçalo Frota no Ípsilon, era também sobre futuros interrompidos:a vitalidade daqueles relatos surpreendia, as esperanças no futuro de um país que não se materializaram.
No CAB, a conferência musical de Ian Nagoski (Don’t let me be lost to you) falava também de um país que não chegou a existir: uns Estados Unidos que tivessem sido fiéis aos versos que estão aos pés da Estátua da Liberdade (“Give me your tired, your poor, / Your huddled masses yearning to breathe free”). O trabalho meticuloso de Nagoski transforma o lixo (pilhas de discos gravados há cem anos por imigrantes do Médio Oriente nos Estados Unidos) num mosaico fascinante que reúne nerdiness, a grande História e vidas duras interrompidas pelo alívio breve de uma canção.
O fio horizontal deste programa é o que liga o seu momento inicial ao final: a morte em Gardens Speak e o sono em Parasomnia de Patrícia Portela, zonas só na aparência imunes aos combates políticos do presente. (Parasomnia estará na Mãe d’Água das Amoreiras de 2 a 7 de Julho, depois de uma passagem memorável pelo FITEI deste ano.) Mas o abandono do sono e da morte pontuam necessariamente os outros momentos deste programa: estão na memória esburacada da narrativa de Nagoski; nos cataclismos inventados pelas crianças de Lookout; e nas elipses em que nos vendavam os olhos no passeio de Joana Braga. Rasurar, alisar, esquecer, deixar-se ir.
Politécnica, Centro Jean Monnet, CAB, Mãe d’Água, são pontos num mapa que tem no centro o Teatro do Bairro Alto. E o centro está, claro, vazio. Ou melhor, em obras. Para nos ajudar a pensar este teatro em pousio, convidámos o artista e académico (e mágico) Augusto Corrieri para nos apresentar duas das suas conferências-performance sobre o assunto. (Era já com a inspiração mais ou menos secreta de Corrieri que foram pensadas as peças do podcast.) In Place of a Show é um programa duplo que estreia amanhã (quarta) e repete na quinta. Vai falar-nos do Teatro Olimpico de Vicenza (o primeiro teatro pensado para ser interior, agora pouco mais do que uma atracção turística) e o Dalston Theatre de Londres, devorado pela gentrificação. Como num número de magia, o importante aqui (como Corrieri nos explicou num mail) é ver como o que está aqui também não está aqui; e como o que não está aqui está afinal aqui. Se quiserem estar na conferência não estando, podem assistir por streaming na quinta. Mas a entrada é livre, e se vierem ao CAB estarão directamente sentadxs por cima do foyer do TBA (a Sala Manuela Porto): a pairar sobre um teatro vazio.
Abraços,
Francisco