Abas Abertas

Inscrever-se
Arquivo
Março 14, 2024

[Abas Abertas #8] Notícias sobre cancelamentos foram um tanto exageradas

As notícias sobre o cancelamento da historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz aparentemente foram um tanto exageradas, pois a professora da Universidade de São Paulo foi eleita imortal da Academia Brasileira de Letras no dia 7 de março.

Há poucas semanas, a outrora revista de maior circulação no Brasil lamentava, em matéria de capa ilustrada com abuso de inteligência artificial, a "intolerância" da "turma do politicamente correto". O texto principal daquela edição de Veja é uma coletânea de anedotas - inclusive o caso de Lilia Schwarcz - e opiniões pedestres a respeito de um espantalho a que os estadunidenses chamam de "cultura woke", ou em tradução livre, cultura da lacração. Desafio o leitor a encontrar qualquer traço de apuração original no meio do que, em jargão jornalístico, chamamos de cozidão.

Além das credenciais acadêmicas abundantes, Lilia criou nos anos 1980, com seu marido Luiz e com o herdeiro do Unibanco Fernando Moreira Salles, a editora Companhia das Letras, talvez a mais importante do Brasil nas últimas décadas e hoje uma empresa multinacional. Schwarcz ocupou a cadeira do falecido historiador Alberto da Costa e Silva, ele também um estudioso da africanidade.

A meu ver, a nova imortal da ABL é uma ótima amostra de que, apesar do mimimi da direita e da esquerda macha, cancelamentos não existem. Pelo menos, não para quem faz parte da elite econômica, política ou cultural. Ajuda um pouco se for branco e cisgênero. Todavia, se for um trabalhador braçal com ascendência mexicana, por exemplo, o cancelamento pode ser mais definitivo.

Os episódios tachados de "cancelamentos" não passam, em geral, de um mero período de inconveniência. Normalmente seus alvos têm a posição social restituída em poucas semanas, às vezes sem nem mesmo precisarem se humilhar vestindo camiseta branca e gravando um vídeo pedindo desculpas a quem houver "se sentido ofendido". Embora o teor vitriólico das críticas nas redes sociais possa de fato causar angústia e sofrimento psicológico, os quais não devem ser minimizados, raramente há risco à carreira das pessoas atacadas, no médio prazo.

Até mesmo a infame profissional de relações públicas Justine Sacco, demitida publicamente em 2014 devido a um tweet com uma piada sobre AIDS na África do Sul, retornou à mesma companhia em 2018 - e ocupa hoje o cargo de diretora de questões sociais, vejam vocês! Aparentemente, as notícias sobre o cancelamento de sua carreira foram tão exageradas quanto as relacionadas ao cancelamento de Lilia Schwarcz.

A lista de carreiras declaradas mortas apressadamente é muito mais longa do que a quantidade de nomes mandados comer capim pela raiz pela cultura da lacração. Enquanto a opinião pública se preocupa com o ordálio de artistas, políticos e intelectuais confrontados com as consequências de ações desaconselháveis, o cancelamento de CPFs das minorias acusadas de oprimirem a elite cultural com palavras efêmeras nas redes sociais enche cada vez mais cemitérios nada metafóricos.

<<<<<<<<<<<<<<<>>>>>>>>>>>>>>>

Conforme o Correio Braziliense, Lula proibiu seus ministros de promoverem eventos alusivos aos 60 anos do golpe de 1964. A notícia está alinhada com o perdido que o presidente vem dando nos familiares das vítimas e com a entrevista concedida ao repórter Kennedy Alencar em fevereiro:

O que eu não posso é não saber tocar a história para frente, ficar remoendo sempre, remoendo sempre, ou seja, é uma parte da história do Brasil que a gente ainda não tem todas as informações, porque tem gente desaparecida ainda, porque tem gente que pode se apurar. Mas eu, sinceramente, eu não vou ficar remoendo e eu vou tentar tocar esse país pra frente. Eu tenho um compromisso de fazer esse país voltar a crescer economicamente. Eu quero que esse país seja a quinta ou a sexta economia do mundo. Eu quero gerar emprego de qualidade. Eu não quero ficar remoendo, fazendo as coisas sempre pensando no passado, no retrocesso, dar a volta por cima. Eu fico pensando que, nesse tempo que teve o golpe militar, eu passava muita fome com a minha mãe e o irmão. Não quero ficar lembrando disso, não. A fome que eu passei com a minha mãe, já passou. Agora eu quero que as pessoas comam, que as pessoas que trabalhem, quero que as pessoas vivam. E obviamente que isso faz parte da gente construir o futuro do Brasil e não ficar apenas discutindo o passado, o passado, o passado.

É difícil de compreender a subserviência de Lula aos humores dos militares. Houve uma tentativa de golpe, mas ela fracassou e, com Bolsonaro fora do poder, as chances de um novo Putsch diminuíram. Lula poderia estar preocupado com uma eventual repetição do consórcio entre a caserna e o Congresso, que levou ao golpe contra Dilma Rousseff, mas ele é um presidente bem mais popular e o lavajatismo foi renegado até por seus antigos defensores. As Forças Armadas ainda podem criar algum ruído, é claro, mas nada muito fora do comum na Nova República.

Se o veto a eventos críticos do golpe for realmente uma compensação pela proibição a comemorações por parte dos militares, com suas estúpidas ordens do dia, se trata de um favorecimento indevido do Planalto aos interesses de um grupo específico e minoritário na sociedade, em detrimento da verdade histórica e de sua própria base de apoio. Banir eventos contrários ao autoritarismo também é pagar demais por muito pouco. Se fosse para compensar, melhor seria prosseguir com os planos e liberar as Forças Armadas para celebrarem o golpe nas suas ordens do dia, se quisessem.

Ninguém votou em Lula para seguir com uma tchutchuca dos milicos na presidência e, muito menos, para ver a memória das vítimas da ditadura ser desprezada por mais quatro anos.

<<<<<<<<<<<<<<<>>>>>>>>>>>>>>>

Em mais um caso de político liberal apoiado pelos empresários se mostrando incapaz de cumprir as promessas de gestão sensata das contas públicas, Eduardo Leite pediu arrego ao ministro da Fazenda no dia 7 de março, em audiência na qual se discutiu a dívida do Rio Grande do Sul. A insensatez não é o pedido de renegociação, claro, mas o fato de ter aderido ao regime de recuperação fiscal proposto pelo ultraliberal Paulo Guedes, que criou uma dívida impagável. Com isso, Leite repete o acordo de refinanciamento lesivo aos cofres públicos assinado em 1998 pelo também queridinho dos empresários Antônio Britto (MDB) com o também queridinho dos liberais Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

A meu ver esse histórico mostra que políticos liberais não sabem fazer contas, mas por algum motivo o empresariado e o setor financeiro seguem acreditando em suas promessas de saneamento das contas públicas. Talvez o motivo seja menos o interesse na saúde da Fazenda e mais em comprar patrimônio público na xepa - e de fato entregaram no Rio Grande do Sul, com as privatizações da CRT, da Sulgás, da CEEE e da Corsan, entre outras. Britto também inaugurou a era da concessão de estradas, o que rendeu a seu adversário petista o slogan de campanha "Olívio é o caminho, Britto é o pedágio" e lhe custou a reeleição.

A crise gaúcha pode ser uma oportunidade para o Partido dos Trabalhadores avançar na agenda contrária às privatizações. No momento, a venda da Corsan está sob escrutínio jurídico e o ministro Fernando Haddad poderia condicionar um relaxamento do regime de recuperação fiscal à reversão do negócio por Leite. No mínimo, deveria exigir corpo mole na defesa do processo pelo Piratini e o fim de qualquer plano de privatização futura.

<<<<<<<<<<<<<<<>>>>>>>>>>>>>>>

O Rio Grande do Sul foi o estado brasileiro mais afetado por eventos extremos nos últimos dez anos, conforme levantamento de O Globo. O recorde foi em 2023, quando 765 decretos de emergência foram publicados por municípios gaúchos. O ano de 2024, porém, talvez esteja se encaminhando para superar este número, pois somente até 16 de fevereiro já foram decretadas 340 situações de emergência no estado. Bem vindos ao mundo com temperatura média 1,5ºC acima da média pré-revolução industrial.

Enquanto o barquinho da humanidade afunda, a orquestra da bancada bolsonarista na Assembleia Legislativa segue no mesmo tom e executa um plano para abrir as Áreas de Preservação Permanente do Rio Grande do Sul à predação pelo agronegócio.

<<<<<<<<<<<<<<<>>>>>>>>>>>>>>>

Na edição anterior do boletim Abas Abertas, escrevi bastante sobre urbanismo e mercado imobiliário. Para quem se interessa pelo assunto, vale a pena assistir à aula do economista André Augustin, pesquisador do Observatório das Metrópoles, a respeito da influência do empresariado sobre as políticas urbanas de Porto Alegre. A palestra fez parte do curso de extensão Neoliberalismo: Cidade e Sociedade, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da UFRGS.

<<<<<<<<<<<<<<<>>>>>>>>>>>>>>>

Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março, e considerando o atual momento da geopolítica, recomendo a leitura da coleção de reportagens A Face da Guerra, de Martha Gellhorn. A jornalista foi uma pioneira não só porque nos anos 1930 a profissão era predominantemente masculina, mas porque atuou como correspondente de guerra ao longo de meio século de carreira, cobrindo desde a Guerra Civil Espanhola até a invasão do Panamá pelos Estados Unidos.

O livro traz uma seleção dessas reportagens, incluindo a Guerra do Vietnã, a Guerra dos Seis Dias e a Segunda Guerra. Gellhorn é uma repórter de estilo impecável e traz uma perspectiva muito menos preocupada com batalhas militares e mais com as batalhas do cotidiano civil. Observando a guerra, ela não viu um machão caminhando para longe de uma explosão sem se virar para olhar. Seus heróis são mães, crianças e meninos obrigados a vestir um uniforme e pegar um rifle. Mesmo quando escreve sobre assuntos bélicos ou estratégicos, porém, ela o faz com virtuosismo.

A carreira de Martha Gellhorn infelizmente também é um exemplo das dificuldades encontradas pelas mulheres para alcançarem o reconhecimento. Enquanto ela é praticamente desconhecida fora dos Estados Unidos, seu primeiro marido, o escritor Ernest Hemingway, talvez seja a epítome do correspondente de guerra para o público em geral - embora, a meu ver, a qualidade do jornalismo produzido por Gellhorn seja muito superior. Ambos se conheceram durante o conflito na Espanha e terminaram seu casamento no fim da Segunda Guerra Mundial, porque Hemingway não apenas reclamava de sua ausência em casa, mas passou a boicotar ativamente a carreira de Gellhorn. A HBO lançou um telefilme a respeito da relação entre os dois em 2012.

Em respeito ao 8 de março, não vou terminar essa nota lamentando as humilhações sofridas pela repórter, mas celebrando seu desprezo pelas regras do patriarcado com uma anedota. Quando seu pedido de credencial de imprensa para cobrir o Dia D foi negado pelo comando dos Aliados, junto com os de todas as outras jornalistas mulheres, Martha Gellhorn se disfarçou de enfermeira e foi cobrir a invasão mesmo assim, produzindo um dos melhores relatos a respeito. Gosto de imaginar que isso irritou Hemingway profundamente.

<<<<<<<<<<<<<<<>>>>>>>>>>>>>>>

Estive em São Paulo na última semana de fevereiro e aproveitei um passeio na Liberdade para conhecer o restaurante Koh I Baba. O proprietário, Sorab, deixou o Afeganistão devido às guerras constantes e viveu como imigrante por décadas, enviando dinheiro à família. Quando os Estados Unidos retiraram suas tropas, decidiu resgatar a família, antes que o Talebã tomasse o país inteiro. Vieram para São Paulo e assim nasceu o Koh I Baba, cujo nome faz referência a uma cordilheira onde nascem os principais rios do Afeganistão.

Almocei kabuli pulaw (R$ 68), ou arroz basmati cozido em caldo de costela com cenoura, passas, amêndoas e pistache. A carne pode ser cortada com uma colher e os acompanhamentos incluem um pedaço de pão naan e uma tigelinha de almôndega de cordeiro com cozido de grão de bico. O molho de pimenta da casa é excelente. Para beber, pedi um chá gelado de hibisco com limão, que, mesmo contrariando meu gosto ao já vir adoçado, estava muito refrescante para um dia de calor. Em termos de sabor, a culinária afegã se situa entre a indiana e a persa. Há opções vegetarianas.

Embora se situe em um trecho absolutamente insalubre da rua Tamandaré, o restaurante é um oásis de tranquilidade e limpeza. De fato, não me lembro de ter visitado outro restaurante tão limpo na minha vida e talvez fosse possível comer no chão do banheiro sem pegar nenhuma doença. A decoração dá a impressão de que o cliente está, de fato, em algum restaurante familiar em Cabul, com direito a música popular da Ásia Central rolando na televisão.

Abas Abertas

Por Marcelo Träsel

Rua Ramiro Barcelos, 2705 - Porto Alegre, Brasil

Não perca o que vem a seguir. Inscreva-se em Abas Abertas:
Weblog
Este e-mail chegou a você pelo Buttondown, a maneira mais fácil de lançar e expandir a sua newsletter.