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Março 6, 2024

[Abas Abertas #7] Xiitas do concreto ameaçam Porto Alegre

No dia 6 de fevereiro, o Cais Mauá foi vendido pelo lance mínimo para o único interessado no leilão, um consórcio chamado Pulsa RS. A empresa terá de investir mais de R$ 350 milhões na revitalização da área ao longo de 30 anos. Por isso, chamou a atenção o fato da coordenadora do consórcio, a SPAR Participações LTDA, contar com um capital social de R$ 10 mil e ter sua sede funcionando no apartamento de seu proprietário, Sérgio Stein, até um mês antes do leilão. Essas informações levantaram as sobrancelhas dos porto-alegrenses, escaldados pelos fracassos reiterados de conceder o cais do porto nas últimas décadas.

Em 2010, o consórcio Cais Mauá do Brasil venceu o primeiro leilão de concessão da área, realizado pelo governo da tucana Yeda Crusius, a partir de uma proposta gestada por seu antecessor, Germano Rigotto (MDB). O sucessor de Yeda, Tarso Genro (PT), embora tenha recebido uma recomendação da Procuradoria Geral do Estado para romper o contrato, devido a irregularidades, resolveu o principal empecilho ao projeto, ao assinar um acordo com a Agência Nacional de Transportes Aquaviários, órgão responsável por gerenciar zonas portuárias em nome da União. Mesmo assim, a Cais Mauá do Brasil nada realizou. No governo seguinte, Ivo Sartori (MDB) perdoou as dívidas e outras pendências da concessionária. Em 30 de maio de 2019, o tucano Eduardo Leite acatou a recomendação da PGE e, finalmente, o contrato foi rescindido.

No meio tempo, os armazéns, que compõem a principal vista de Porto Alegre e são registrados como patrimônio histórico, foram se deteriorando. Alguns dos guindastes foram vendidos como sucata. Pressionada pela opinião pública, a Cais Mauá do Brasil criou uma gambiarra chamada Cais Embarcadero, um dos empreendimentos mais bregas já vistos na capital gaúcha, onde a concorrência no quesito é acirrada. É basicamente um shopping center sem telhado, nem refrigeração, no qual um pedestre só consegue entrar atravessando um estacionamento de brita e se arriscando a ser barrado por segurança privada - se for negro ou pobre. Uma vez lá dentro, é quase impossível apreciar o Guaíba, porque a largura do passeio é de cerca de um metro, forçando quem quiser contemplar o lago a pagar pela comida de um dos restaurantes medíocres lá presentes. Uma abominação arquitetônica e cultural. Infelizmente, o contrato do Cais Embarcadero vai até 2026.

Outro resultado concreto da concessão à Cais Mauá do Brasil foi o desvio de dinheiro de fundos de pensão municipais, que redundaram na Operação Gatekeepers, realizada pela Polícia Federal em 2018. Até o momento, o prejuízo à previdência de servidores públicos municipais no Brasil inteiro está em quase meio bilhão de reais. O cais de Porto Alegre virou uma engrenagem num grande festival de crimes contra o sistema financeiro.

Considerando o histórico das tentativas de privatizar o cais do porto, não é surpresa alguma o ceticismo com que o resultado do leilão foi recebido. Os gestores gaúchos talvez devessem ter aprendido com o desempenho da Cais Mauá do Brasil e com o fiasco da privatização da CEEE que leilões nos quais só aparece um concorrente são um mau agouro. O governador e o diretor do Pulsa RS vêm tentando tranquilizar a população, argumentando que, após a homologação do resultado, outras empresas vão se juntar à SPAR e à Credlar, até o momento as únicas participantes do consórcio. A precariedade é tão flagrante que até mesmo as grandes empresas de mídia gaúchas, em geral lenientes ao extremo com privatizações, vêm produzindo uma cobertura crítica.

É absolutamente escandaloso um edital de concessão de uma área pública, povoada por patrimônio histórico, permitir a participação de um consórcio que só existe no papel. É suficientemente grave o governador Eduardo Leite estar pedindo aos porto-alegrenses, traumatizados por décadas de negligência com uma paisagem constituinte de sua cidadania, que aceitem "la garantía soy yo" como evidência de sucesso futuro. Ainda mais grave é a violação aos princípios de transparência pública e impossibilidade de fiscalização do processo.

Ao não restringir a participação no leilão a consórcios devidamente consolidados, com todas as empresas e investidores participantes listados, o edital abre as portas para conflitos de interesse e vai contra o espírito de transparência que deveria reger a gestão pública. O cidadão fica impossibilitado de verificar se as empresas interessadas são idôneas e têm a capacidade de investimento necessária, ou mesmo se apresentam um histórico de respeito ao patrimônio público e à memória popular dos lugares onde atuam.

O modelo permite aos interessados na concessão se esconderem por detrás de testas de ferro, evitando o escrutínio público e eventuais impugnações. Também prejudica o ágio, pois, em vez de competir, as empresas podem fazer um acordo de cavalheiros para se juntarem ao consórcio após a vitória, se nenhum concorrente aparecer e conseguirem o lance mínimo. Empresários cuja influência junto ao setor público facilitaram a flexibilização de regras para o uso do imóvel também podem entrar no consórcio após o leilão e, com isso, obscurecer uma potencial ação entre amigos.

Uma curiosidade a respeito da SPAR pode ser um bom exemplo do tipo de averiguação que a permissão para empresas se unirem ao consórcio após a assinatura do contrato de concessão interdita. Usando o CruzaGrafos, ferramenta oferecida pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo a seus associados, consultei suas relações societárias com outras empresas. Descobri um vínculo de Sérgio Stein com Frederico Schroeder Genro, sobrinho do ex-governador Tarso Genro, em um escritório de arquitetura desativado em 2008 (CNPJ 03.735.999/0001-05). Frederico, hoje auditor federal do TCU, é sócio de Juliano Schroeder Genro na construtora Conceito (CNPJ 05.617.880/0001-63), o qual, por sua vez, é sócio da deputada estadual Luciana Genro (PSOL) no escritório de advocacia Genro & Genro (CNPJ 15.537.821/0001-39). Os dados podem estar defasados, pois dependem de atualização pela Receita Federal, mas para os fins deste boletim não há necessidade ou recursos para os conferir na Junta Comercial.

Evidentemente, não estou acusando Tarso ou Luciana Genro de terem exercido qualquer influência no resultado do leilão. Exceto se surgirem evidências em contrário, a relação entre Stein e a família Genro é apenas uma coincidência inusitada. Pessoalmente, até me sentiria aliviado se houvesse alguma proximidade entre políticos de esquerda e o consórcio vencedor, pois isso talvez sinalizasse para um projeto urbano mais focado nos interesses populares e menos nos do empresariado. O motivo para apresentar essas informações é demonstrar qual tipo de investigação o edital do Cais Mauá impediu a sociedade civil de realizar. Após o fato consumado, será muito mais difícil evitar que empresas com interesses escusos ou laranjas de políticos com poder de decisão sobre o leilão, ou sobre o regime urbanístico do cais, metam suas mãos no coração de Porto Alegre.

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Em 26 de janeiro, o "representante" do consórcio Pulsa RS, Sérgio Stein, apresentou à imprensa algumas noções do projeto e anunciou que pretende trabalhar com o escritório de arquitetura sueco Mandaworks. Em princípio, é uma boa notícia, porque a Escandinávia é reconhecida pelo bom desenho urbano e eles apresentaram uma proposta interessante para a revitalização de uma parte das docas de Hamburgo. Por outro lado, nenhum dos projetos listados no website do escritório está pronto e a maioria foram submissões a concursos, então ainda não há elementos para julgar o sucesso de suas ideias.

Ironicamente, como uma edição especial do Jornal Já mostrou em 2019, o projeto vencedor do concurso público Porto dos Casais, realizado sob o governo de Antônio Britto (MDB) em 1996, era muito melhor para a cidade. Digo ironicamente porque, na época, a ideia foi bastante atacada por movimentos alinhados à esquerda, devido ao seu espírito "neoliberal". O projeto atual concede muito mais área para a iniciativa privada e permite a construção de residências privadas, enquanto cobra do concessionário um aluguel menor.

A esquerda não estava errada em apontar o caráter neoliberal do projeto Porto dos Casais. Se essa ironia deixa algo evidente, é como o neoliberalismo foi capaz de deslocar a Janela de Overton para uma situação na qual uma proposta muito pior do ponto de vista urbanístico e fiscal provoca muito menos reclamações.

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O empresariado teve sucesso em aparelhar o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA). Apenas três dos nove ocupantes das vagas destinadas a representantes da sociedade civil se reelegeram. A Câmara de Dirigentes Lojistas e o Conselho Regional dos Corretores de Imóveis passarão a fazer parte do grupo, enquanto o Conselho de Arquitetura e Urbanismo e o Instituto de Arquitetos do Brasil saíram.

O resultado se deveu em grande parte ao fato da comissão eleitoral ter estendido o prazo previsto em edital para várias entidades regularizarem suas candidaturas, o que permitiu a participação de organizações sem nenhuma relação com planejamento urbano ou meio ambiente, como o Instituto Caldeira ou o próprio CDL, que acabou eleito. Também houve denúncias sobre influência indevida nas eleições para representantes das regiões.

Um CMDUA sem o IAB-RS ou o CAU-RS não passa de uma grande farsa - e caberá aos farsantes analisar, entre outras coisas, a renovação do Cais Mauá.

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A prefeitura de Porto Alegre oferece ao público um painel de acompanhamento dos valores de imóveis negociados na capital desde 2008, chamado Imobindex. Para as pessoas hoje com mais de 60 anos, imóveis sempre foram uma forma segura de investir e proteger o patrimônio. Afinal, é a geração traumatizada pelo confisco da poupança pelo ex-presidente Fernando Collor.

Todavia, os dados do Imobindex demonstram que, nos últimos dez anos, quem investiu em imóveis segunda mão perdeu dinheiro, exceto se encontrou alguma oportunidade muito fora da média. Em valores absolutos, os preços estagnaram em 2013, mas, corrigindo pelo IPCA, vêm caindo desde 2016. Seria melhor ter deixado o dinheiro na poupança, que é isenta de impostos e tem liquidez imediata.

Ao contrário do que poderiam pensar os eleitores gaúchos com mais de 60 anos, os períodos nos quais os imóveis residenciais tiveram aumento real de preço em Porto Alegre coincidem com as presidências petistas. O setor começa a fazer água no ano do golpe contra Dilma.

Comprar na planta ainda pode ser um bom investimento, dependendo do modelo de aquisição - se à vista ou parcelado - e desde que o mercado esteja aquecido - o que não é o caso de Porto Alegre. Se o preço dos usados estagnou, além disso, a tendência é o preço de venda de um apartamento recém-construído ser pressionado. Mesmo pagando à vista, dificilmente o dinheiro parado durante os dois ou três anos da construção vai render mais do que os produtos de renda fixa mais básicos, os quais ainda têm a vantagem da liquidez.

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Militantes de esquerda vaiaram uma jornalista após ela perguntar a Lula, durante uma coletiva, sua opinião sobre a manifestação bolsonarista em 25 de fevereiro. Como presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo entre 2020 e 2021, acompanhei a situação no "cercadinho do Alvorada", onde repórteres eram constantemente submetidos a apupos. Consideraria lamentável ver a esquerda adotar comportamentos da extrema direita, se a militância não estivesse apenas retornado a costumes anteriores a 2018, quando assediava jornalistas considerados participantes do "Partido da Imprensa Golpista". O aspecto lamentável, mesmo, é perceber a incapacidade de aprender sobre o papel da imprensa durante a presidência de Bolsonaro.

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O colunismo político no Brasil é, de maneira geral, lamentável. No entanto, há três analistas cujo atestado de sensatez eu assino embaixo:

Maria Cristina Fernandes

Celso Rocha de Barros

Vinícius Torres Freire

Fica a dica.

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Os conservadores começaram a atribuir o fim da revista Vice à lacração. A narrativa se baseia na hipótese duvidosa de que a revista fez um sucesso estrondoso nas décadas de 1990 e 2000 por atender aos desejos de uma audiência de esquerda radical, cujo ethos incluiria iconoclastia, atitude ofensiva às instituições sociais e valorização absoluta da liberdade de expressão. Na década de 2010, porém, a Vice teria mudado a política editorial em linha com as mudanças da esquerda progressista, que teria se tornado mais sensível ao politicamente correto.

Mesmo se aceitarmos a premissa duvidosa de que a audiência da Vice em seus primeiros anos era de esquerda, a hipótese de falência motivada pelo ocaso do esquerdomacho não faz sentido. Afinal, se o sucesso nos primeiros 20 anos se deveu ao alinhamento com os costumes e a moral de uma esquerda progressista, a correção dos rumos editoriais à medida que a ideologia de sua audiência mudava deveria ter mantido a revista no mesmo nível. Portanto, ou a Vice foi de Americanas por causa de outros fatores, como a crise econômica geral da mídia, ou porque sua audiência em tempos de sucesso nunca foi a esquerda em primeiro lugar.

Considerando o fato de um dos co-fundadores da Vice, Gavin McInnes, ter deixado a revista em 2008 por "divergências criativas", para logo em seguida fundar o grupo neonazista Proud Boys, talvez a segunda hipótese seja a verdadeira.

Analisando a partir da esquerda, Cory Doctorow atribui o fim da Vice à péssima gestão: "O fato de esses bilionários geniais não conseguirem descobrir como 'redirecionar' um site cujos funcionários a) produzem um trabalho brilhante, popular e bem-sucedido; e b) partem para fundar empresas bem-sucedidas que comercializam esse trabalho; diz tudo sobre sua capacidade de identificar 'uma boa oportunidade de negócios'."

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Elton John está se desfazendo de sua mansão em Atlanta e resolveu colocar em leilão os móveis, itens de decoração, roupas e acessórios. A coleção evidencia o gosto impecável do cavalheiro de Sua Majestade para arte - já o gosto para móveis, roupas e relógios, deixarei sob julgamento do leitor. Há uma grande quantidade de fotografias, incluindo algumas de Cartier-Bresson, Ansel Adams, Richard Avedon e Robert Mapplethorpe. Se rico fosse, eu compraria a máquina de pinball.

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Durante o recesso letivo, li a trilogia de ficção científica de Cixin Liu, Lembrança do Passado da Terra. O autor chinês traz uma visão ao mesmo tempo fantástica e realista de uma eventual interação entre humanos e alienígenas. Realista não só em relação à física, mas também à política e ao comportamento humano. O aspecto fantástico, ao mesmo tempo, nunca se afasta de possibilidades aventadas pela teoria científica e um dos grandes méritos de Liu é mostrar o quanto a realidade pode ser mais incrível do que a imaginação sem lastro na física muitas vezes pinta.

É difícil comentar a obra sem entregar viradas importantes da trama, mas, basicamente, a história aborda a resposta da Terra a uma ameaça de invasão por uma raça alienígena cujo mundo, no sistema composto por três estrelas de Alpha Centauri, está condenado. A partir desse argumento simples e até mesmo clichê, Liu empreende um tratado de sociologia espacial e projeta um futuro possível que se estende até a contração final do universo. Um dos aspectos mais interessantes da trilogia é, de fato, acompanhar a dieegese se estendendo por uma escala cósmica.

O antropocentrismo é um dos temas centrais em discussão na obra. Em resposta ao paradoxo de Fermi, o autor parece subscrever a hipótese da floresta sombria. Os eventos narrados colocam em cheque os principais valores humanos, sobretudo a liberdade individual - uma perspectiva que raramente se encontra na ficção científica ocidental. Ao final da leitura, só não passei a considerar a ideia de incluir os discos de ouro na sonda Voyager uma estupidez completa do Carl Sagan porque é fisicamente quase impossível alguma civilização alienígena encontrar essas informações no meio do espaço sideral.

A trilogia é composta pelos livros O Problema dos Três Corpos, A Floresta Sombria e O Fim da Morte. Li o primeiro em português, mas achei a tradução ruim, então li o segundo e o terceiro em inglês, cujo texto é bem melhor. A Netflix deve lançar em uma série sobre o primeiro volume.

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O proprietário do Mondo Cane, Ed da Camino, resolveu se desfazer do estabelecimento. O Darsie, antigo bartender, resolveu criar um crowdfunding para assumir o bar e evitar que feche, ou perca sua alma na mão de outro administrador. A campanha, no modelo "tudo ou nada", vai até dia 4 de abril.

Abas Abertas

Por Marcelo Träsel

Rua Ramiro Barcelos, 2705 - Porto Alegre, Brasil

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