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Fevereiro 22, 2024

[Abas Abertas #6] Aquecimento global e liberalismo econômico matam bailarina

Na noite de 16 de janeiro, quando um temporal com ventos de quase cem quilômetros por hora derrubava cerca de 3 mil árvores e, consequentemente, deixava a maior parte de Porto Alegre às escuras, um incêndio matou a bailarina e professora da UFRGS Carla Vendramin. Assisti a algumas performances de Carlinha na falecida Sala 209 da hoje comatosa Usina do Gasômetro. Da pouca convivência social nessas ocasiões, me pareceu uma pessoa muito doce e, se houvesse justiça cósmica, não morreria tão cedo, de forma tão trágica.

Deixarei os aspectos profissionais e pessoais do obituário para seus colegas, alunos e amigos, pois não a conheci profundamente em nenhuma dessas áreas, nem em qualquer outra. A maneira como ela morreu, porém, merece alguns comentários e acredito que essa abordagem lhe agradaria, pois nos últimos anos vinha explorando o diálogo entre o movimento e a natureza.

Conforme as primeiras notícias, "a suspeita é que o incêndio tenha começado por conta de um curto-circuito ou por velas, utilizadas para iluminar o imóvel, que estava sem luz devido ao temporal". Outras sete ocorrências de incêndio foram vinculadas ao temporal. Talvez Carlinha deva ser considerada uma vítima da irresponsabilidade com que governantes e legisladores vêm tratando a emergência climática nas três esferas.

O primeiro temporal arrasador aconteceu em 2016, os eventos extremos vêm se tornando mais frequentes e, mesmo assim, Porto Alegre segue despreparada. Não apenas isso, mas em nível estadual e federal se discute, sem qualquer vergonha na cara, a possibilidade de instalação de uma mina de carvão quase dentro da capital, a exploração de petróleo perto da foz do rio Amazonas e se propõe incentivos fiscais tanto para a indústria automobilística tradicional quanto para a criação de gado, entre outras atividades perniciosas para a atmosfera.

As situações são à primeira vista muito distantes umas das outras, mas, se quisermos sobreviver, é necessário enxergar todas elas como vinculadas ao aquecimento global. O ano de 2023 foi o mais quente desde que existem registros, chegando a uma média de 1,48ºC acima dos níveis pré-industriais. A meta do Acordo de Paris era manter o aquecimento abaixo de 1,5ºC até 2100, para evitar os distúrbios climáticos mais intensos. No entanto as políticas e projetos de extração de combustíveis fósseis já contratados até 2021 apontavam para um aquecimento de 3ºC acima da média anterior à revolução industrial.

De lá para cá, governos e empresas ao redor do mundo seguiram investindo em projetos de extração de combustíveis fósseis ou que provocam desmatamento, seguiram oferecendo incentivos para a produção de automóveis particulares a combustão, seguiram incluindo usinas termelétricas em suas matrizes energéticas. Não à toa, a marca de aquecimento 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais foi praticamente atingida em 2024, muito antes das previsões mais pessimistas.

À inação quanto a políticas mais gerais de combate ao aquecimento global se juntou a inação dos governos federal, estaduais e municipais brasileiros quanto ao planejamento para lidar com os sintomas da mudança climática. No Rio Grande do Sul, o desprezo do Piratini pelo tema causou a segunda maior tragédia climática da história, quando um ciclone extratropical matou 50 pessoas. Avisos da natureza não faltaram, mas nada foi feito. Na época, o governador e prefeitos prometeram tomar medidas para mitigar os problemas trazidos por eventos climáticos extremos - inclusive os episódios de falta de energia elétrica.

Todavia, quase meio ano depois nem mesmo havia algum plano consistente e, muito menos, alguma medida concreta implementada. No caso de Porto Alegre, o prefeito Sebastião Melo nada fez para aprimorar a manutenção das árvores e a CEEE Equatorial pouco fez para tornar a rede elétrica mais resiliente. De fato, Melo preferiu investir em fantasias a respeito de enterrar a fiação, em vez de tomar um caminho mais produtivo, como reconstituir as equipes fixas dedicadas a cuidar dos vegetais nos bairros, vinculadas à secretaria de Meio Ambiente.

O problema da preparação contra eventos climáticos extremos é semelhante ao do saneamento básico, pois, assim como encanamento de esgoto é uma obra invisível - por isso, na visão de políticos, não rende votos - o planejamento dos governos só é percebido quando falha. É preciso não apenas compreender o fenômeno complexo contra o qual se está lutando, mas também mudar a cultura política. Um desafio grande, mas não podemos perder mais pessoas como Carlinha e as dezenas de mortos pelas enchentes de setembro de 2023.

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A colunista da RBS Rosane de Oliveira é um bom exemplo de como as empresas de mídia que defendem as privatizações passam pano para a alienação dos bens públicos quando tudo sai errado. No jornal e na rádio, se esforçou em lembrar aos porto-alegrenses que no temporal de 2016 a CEEE, ainda estatal, demorou cerca de uma semana para normalizar o fornecimento de energia em todas as regiões sob concessão. Em Porto Alegre, levou quatro dias. A previsão da Equatorial para restabelecer a luz em toda a capital era de quatro dias, mas acabou levando uma semana.

Um dos principais argumentos em favor da privatização da CEEE era a oferta de melhores serviços ao cidadão. Como o jornal Zero Hora celebrou em editorial:

"O Rio Grande do Sul avança na privatização de estatais e concessões - que não são um fim em si, mas um meio para resolver uma série de problemas, em relação tanto as dificuldades dos cofres públicos quanto à oferta de serviços adequados aos cidadãos. [...] Cria-se, assim, um novo ambiente, que faz o Rio Grande do Sul voltar a ser visto como um território amigável a investimentos e a negócios privados, realimentando um círculo virtuoso de finanças saudáveis, boa infraestrutura, crescimento econômico e geração de emprego e renda. É o cenário que se descortina."

Se a Equatorial leva, na melhor das hipóteses, o mesmo tempo da estatal para realizar consertos, então por que não manter a empresa pública? Além disso, pelo menos em termos de atendimento ao cliente a CEEE costumava ser muito melhor do que a Equatorial. Portanto, se pode afirmar que o serviço oferecido pela iniciativa privada até agora é inferior ao da "burocracia" e dos "cabides de emprego" do serviço público.

Após o fiasco, Rosane correu para condenar os vereadores que se juntaram à população para protestar pelo retorno da energia, os acusando de atuarem com interesses "político-eleitorais". É um fenômeno curioso, o dos colunistas de política que não entendem, ou fingem não entender, a política. O papel de um representante, em especial um vereador, é defender os interesses de seu eleitorado. Ao mesmo tempo, a privatização é tratada como um assunto meramente técnico, quando na verdade é tão "político-eleitoral" quanto um protesto nas ruas.

Outro discurso curioso adotado pelos tarados por Estado mínimo quando uma concessionária presta maus serviços é de que, no fim das contas, a responsabilidade é do Estado. Colunistas de política e economia se esforçam em distribuir parte da conta para agências reguladoras responsáveis por fiscalizar a Equatorial. Ora, se a iniciativa privada é assim tão eficiente, por que as concessões só funcionam se os empresários tiverem o Estado como babá? A responsabilidade pela má prestação de serviços é dos acionistas e dos gestores das empresas. Se for para o Estado microgerenciar as concessões, melhor manter as empresas públicas e sob controle dos governantes.

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Os mbyá-guarani iniciaram uma retomada em área da antiga Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária em Viamão. Os funcionários se mostram preocupados com a continuidade dos estudos científicos, com um banco de material genético vegetal e com a preservação de espécies raras do bioma pampa. É um dilema entre dois interesses públicos legítimos e um teste para a comunidade científica, que em grande parte apoia os direitos dos indígenas, mas raramente é obrigada a ceder recursos para as retomadas.

Todavia, é um cenário no qual todos os envolvidos podem sair ganhando. A Fepagro vem sendo precarizada pelo governo do Rio Grande do Sul e essa área em breve pode se tornar alvo da ganância do setor imobiliário. Conceder a posse da terra aos mbyá-guarani pode garantir a preservação do bioma contra a sanha privatizadora e os indígenas já se manifestaram favoráveis à continuidade da pesquisa no local. Sonhando alto, uma parceria entre Fepagro, UFRGS e os habitantes ancestrais do local poderia significar a formação de especialistas indígenas em pesquisa agropecuária.

Contribuições à retomada podem ser enviadas para o PIX 51 98446-3854, em nome de Eloir de Oliveira.

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É interessante como sempre há liberais envolvidos nas derrapadas da democracia brasileira.

O momento em que o país esteve mais próximo de se tornar uma Venezuela foi quando o Congresso aprovou a reeleição para permitir um segundo mandato a Fernando Henrique Cardoso, no melhor estilo caudilhesco latino-americano. Em 2014, Aécio Neves, inconformado com a derrota, jogou uma chave inglesa na engrenagem com o questionamento dos resultados e engendrou as teorias da conspiração que até hoje assombram o processo eleitoral. Em 2016, o MBL, o Instituto Millenium, o Fórum da Liberdade e muitas outras organizações liberais apoiaram o golpe de Michel Temer contra Dilma Rousseff, junto com os tucanos, sempre bem dispostos a se associarem com os piores refugos autoritários.

Em 2018, Xico Graziano, fundador do PSDB e ex-chefe de gabinete de Fernando Henrique, deixou o partido para apoiar o candidato Jair Bolsonaro. As mesmas organizações que apoiaram o golpe contra Dilma se aglomeraram em torno do ex-presidente e futuro inquilino da Papuda, junto com vários dos luminares do liberalismo brasileiro. O centenariamente liberal Estado de S. Paulo considerou muito difícil a escolha entre Haddad e o ex-capitão fã da ditadura. Após eleito, Bolsonaro contou com os serviços de flanelinha de Fernando Schüler, ex-secretário estadual de Justiça do Rio Grande do Sul sob a tucana Yeda Crusius e ex-diretor do Insper, que em janeiro de 2020 publicou em sua coluna na Folha de S. Paulo texto com o infame título "apesar dos alarmistas, um país normal".

Com liberais assim, ninguém precisa de fascistas.

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João Amoêdo, fundador e ex-presidente do Partido Novo, porém, merece o reconhecimento de que fez jus ao ideário liberal, quando pediu, sem meias palavras, votos para Lula nas eleições de 2022, em favor da preservação da democracia.

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"Musas só servem para fracassados."

CAVE, Nick

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Ouvi todas as temporadas disponíveis do podcast Ambiente de Música, cujos responsáveis são os mesmos do programa Choque de Cultura, e ri demais com as opiniões dos maiores nomes do transporte alternativo do país.

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Uma senhora me passou recentemente sua receita de pepperonata, conserva muito boa para comer com torradinhas, ou até mesmo usar como molho para massa.

  • 4 pimentões vermelhos e/ou amarelos

  • Óleo vegetal (usei girassol)

  • 100 ml de vinagre de vinho branco

  • 2 ou 3 colheres de sopa de açúcar

  • Azeite de oliva a gosto

Basta fatiar e refogar os pimentões no óleo vegetal por cerca de dez minutos. Depois, adicione o vinagre, o açúcar e deixe evaporar um pouco. No meu caso, os pimentões puxaram muita água e restou bastante líquido, mas ele pode ser usado em várias outras receitas depois - eu usei para dar um tchan no feijão. Misture azeite de oliva extravirgem a gosto, ou nenhum, se o seu orçamento estiver apertado. Transfira para potes de vidro e deixe apurar por alguns dias na geladeira.

Abas Abertas

Por Marcelo Träsel

Rua Ramiro Barcelos, 2705 - Porto Alegre, Brasil

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