[Abas Abertas #5] Garfadas, labirintos e necromancia computadorizada
A edição do podcast Perimetral com a participação das "influenciadoras" Crys Amorimm e Sofias por Aí evidencia algumas das razões pelas quais deixei morrer o weblog Garfada, que mantive entre 2006 e 2015. Questionadas pelos apresentadores sobre quais seriam seus estabelecimentos preferidos em Porto Alegre, as produtoras de conteúdo se mostraram incapazes de responder.
Um motivo são as suas obrigações comerciais, pois tanto não é bom para os negócios privilegiar um cliente em detrimento de outro, quanto não o é oferecer publicidade gratuita. Outro motivo, mais grave, é o fato das redes sociais terem potencializado o espírito chapa branca que já predominava nas páginas dedicadas ao assunto na imprensa - os próprios apresentadores comentam que no jornalismo é prática comum evitar a crítica.
O falecido caderno Gastronomia, de Zero Hora, por exemplo, jamais falava mal de restaurante algum. O foco era nas receitas, notícias sobre novos produtos e divulgação de eventos ou inaugurações. Essa ausência de espaço para crítica na imprensa gaúcha e o início da vida de assalariado, que me permitiu começar a frequentar restaurantes, foram as motivações para criar o Garfada.
Para os padrões da época, o Garfada fazia sucesso. Cheguei a ser convidado para alguns eventos, fazer alguma publicidade, votar nos melhores do ano da Veja Porto Alegre. Nunca recusei comida grátis, é claro, mas em geral preferia pagar do meu bolso, porque é muito menos tenso criticar quando não se deve nada ao estabelecimento. Alguns chefs compreendiam, outros ficavam chateados. É do jogo.
No entanto, em 2007 surgiu o Destemperados, com uma proposta manifestamente chapa branca e partindo de uma premissa equivocada: "O cenário informativo da gastronomia era território dos críticos. Era nota boa e nota ruim para cá e para lá. Portanto, de certa forma, era distante da realidade das pessoas que simplesmente gostavam de comer e beber bem". Como observei acima, a crítica gastronômica em Porto Alegre quase inexistia.
O Destemperados publicava apenas resenhas positivas de restaurantes, focadas na "experiência". Com o aumento da audiência, leitores passaram a enviar seus próprios relatos, o que ampliou bastante a frequência de publicação. Eles começaram a publicar guias impressos e outros tipos de conteúdo, conseguiram patrocinadores e, em 2014, foram comprados pela RBS, vindo a substituir o caderno Gastronomia da Zero Hora.
Acreditava em 2007 haver espaço para um guia como o Destemperados e acredito hoje haver espaço para canais como o de Crys Amorim e Sofias Por Aí, mas uma externalidade negativa de seu sucesso foi o fim da pouca crítica gastronômica existente em Porto Alegre. Quem se arriscaria a pagar por uma crítica negativa, quando pode pagar por publicidade travestida de jornalismo?
Além de concentrar as verbas publicitárias, esses canais também passaram a monopolizar a audiência, com a algoritmização de tudo. Isso porque produzir resenhas é bem mais fácil e rápido do que elaborar uma crítica e a frequência de publicação é um parâmetro fundamental para o alcance em plataformas como Instagram ou ferramentas de busca como o Google.
Apreciando este cenário e sobrecarregado por outras obrigações, acabei deixando de atualizar o Garfada. Também contribuiu para a decisão o fato de viver em Porto Alegre, onde, com muito boa vontade, existe meia dúzia de restaurantes que valem a pena. Em certo momento, não havia mais assunto, exceto se eu me dispusesse a gastar pólvora em chimango e passasse a criticar estabelecimentos sem proposta alguma, ou se me focasse em receitas.
De fato, os atores da boa gastronomia em Porto Alegre seguem quase todos os mesmos de quase dez anos atrás. Marcelo Schambeck e Carlos Kristensen conseguem se atualizar e manter o Capincho e o Um interessantes. Leonardo Magni e Liliana Andriola seguem ofecerendo a melhor gastronomia possível pelo menor custo no Mandarinier. Eduardo Sehn vendeu o Koh Pee Pee para um grupo empresarial e a qualidade se manteve, mas não cheguei a conhecer seus novos empreendimentos.
Ricardo Dornelles me entusiasmou com invenções como a moranga curada e os coquetéis autorais do Firma, mas, mesmo sendo concorrido, o lugar fechou há um ano. A cafeteria Moa, de Stephania Corá, Sophia Corá e Caroline Silvas, foi o último estabelecimento da capital cuja cozinha me surpreendeu positivamente. Fora esses, a maior parte dos novos restaurantes parecem ser vítimas da tellinização que se abateu sobre Porto Alegre: entregam pratos com bons ingredientes tratados de forma competente, mas tudo muito comum, focado no gosto médio.
Em suma, não há nem dinheiro, nem ambiente para a crítica gastronômica na capital gaúcha.
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A esquerda decidiu perder mais uma vez as eleições para a prefeitura de Porto Alegre, a julgar pela escolha de Maria do Rosário como candidata pelo PT e Luciana Genro pelo PSOL. Excetuando algum acontecimento imprevisível, ambas são detestadas pelos eleitores médios e pouco animam a militância de seus próprios partidos. Ambas as legendas fizeram um movimento em direção a uma chapa única, talvez no intuito de não apenas perder, mas perder com força.
É uma situação lamentável, porque os tempos recentes foram ruins para Sebastião Melo e há oportunidade para defenestrar esse grupo que está há 20 anos ocupando a prefeitura, se esforçando para fazer Porto Alegre desistir de ser uma cidade. Uma eventual terceira opção provavelmente virá do PSDB e seus aliados, talvez com a ex-policial Nadine Anflor. Mesmo se ela ganhar, porém, deve compor com a atual base de Melo, a julgar pela trajetória de Marchezan.
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O governo Lula, inacreditavelmente, vai financiar a indústria de carros a combustão com imposto sobre a importação de carros elétricos. É possível se decepcionar com essa notícia, mas não ficar surpreso, pois o governo de Dilma Rousseff foi o que mais incentivou a aquisição de automóveis particulares desde a redemocratização.
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O comediante George Carlin faleceu em 2008, mas no dia 9 de janeiro um especial chamado "Estou feliz por estar morto" apareceu no YouTube. Não se anime se for um fã, no entanto, porque se trata de um vídeo produzido por inteligência artificial. Não está muito claro se apenas a voz, ou se o roteiro também foi criado por um computador, mas tudo indica que sim. As imagens são ilustrações do texto manufaturadas por um LLM como Dall-E ou MidJourney e exibem a mediocridade característica.
A máquina fez um trabalho razoável ao imitar a voz e o estilo de Carlin. Seria difícil descobrir que se trata de uma imitação, se não houvesse aviso. Por outro lado, as piadas são... Planas, bidimensionais, ou algo assim - pelo menos até o minuto 20, quando minha paciência se esgotou. Basta assistir a um vídeo qualquer do comediante no YouTube para comparar e a diferença fica evidente.
Isso levanta uma questão ética importante: é aceitável usar inteligência artificial para produzir uma imitação barata de um artista e arriscar que algum desavisado pense algo como "Carlin perdeu a mão, muito chato esse vídeo". Também levanta uma questão jurídica relacionada à propriedade intelectual, porque há grandes chances de gravações de espetáculos do artista terem sido usadas para treinar a máquina sem o licenciamento adequado.
A filha de Carlin está considerando um processo contra os responsáveis pelo falso especial e francamente eu espero que ela vença.
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Ainda não assisti ao terceiro filme sobre o desastre aéreo nos Andes que levou a um episódio de canibalismo entre jogadores de rúgbi uruguaios, mas a maneira como Sociedade da Neve mostra os pilotos bebendo chimarrão não transmite muita confiança na qualidade da pesquisa para o roteiro.
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Durante o recesso letivo da UFRGS, escutei a radionovela França e o Labirinto, lançada no Spotify em agosto de 2023. Selton Mello dá voz ao detetive particular que protagoniza a investigação sobre o retorno de um assassino em série preso por ele décadas antes. Seria apenas mais uma história de suspense como tantas outras, se Nelson França não fosse um detetive cego. Esse aspecto prometia uma boa exploração do áudio binaural, pois permitiria ao ouvinte se sentir de fato na pele do herói. Nos primeiros episódios isso acontece, mas a impressão é de que da metade em diante os produtores se esqueceram dessa possibilidade e deixaram de aproveitar o formato. Apesar disso, o roteiro é bom e a série vale o tempo investido.
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A dica de cozinha é sempre colocar dois ou três dentes de alho com casca na airfryer, quando for assar qualquer coisa salgada. O alho assado fica mais suave para ser usado em pastinhas e confere um sabor caramelado aos molhos, mas é desperdício de energia ligar a airfryer ou o forno só para isso. Então, aproveite outras preparações e guarde os dentes já assados.
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Esta quinta edição do Abas Abertas precisou de um intervalo maior para ser elaborada devido à necessidade de migração do TinyLetter para outro serviço. Após analisar as alternativas, optei pelo ButtonDown, por oferecer mais controle sobre as configurações e tratamento de dados dos assinantes. Também não obriga ao uso de funcionalidades "sociais" e, pelo menos até o momento, não foi acusado de passar pano para nazistas. O serviço é gratuito até mil assinantes, então me parece que poderei usar eternamente sem pagar nada.
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Desejo a todas e todos uma excelente volta em torno do Sol neste 2024!
Por Marcelo Träsel
Rua Ramiro Barcelos, 2705 - Porto Alegre, Brasil