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Novembro 29, 2023

[Abas Abertas #4] Rum, sodomia e chibata

Shane McGowan, compositor e vocalista da banda The Pogues, morreu neste 30 de novembro, aos 65 anos. Considerando seus hábitos, talvez se possa dizer que durou bastante. Afinal, ele teve a manha de ser expulso de um bando de bêbados por beber demais - embora a heroína talvez tenha sido a gota d'água. Certa vez, o segurança de um pub onde os Pogues iriam tocar impediu a entrada de McGowan porque ele estava travadaço e se parecia com um morador de rua. Noutra, tirou toda a roupa e se pintou de azul durante uma turnê na Nova Zelândia. 

Gosto muito das obras de alguns artistas, mas a relação dos fãs com seus ídolos me parece incompreensível. Enquanto muita gente adoraria, digamos, sentar ao lado de um de seus músicos, escritores ou cineastas favoritos em um jantar ou viagem de avião, a mim sempre parece que não vou ter nada a dizer, nem nada que eu queira perguntar. Tudo de que preciso saber está nas obras. Então foi com certa surpresa que senti alguma comoção com a morte de McGowan. Talvez porque ele fosse um dos poucos artistas de cuja obra gosto que me parecia uma boa companhia para beber umas cervejas no boteco.

Tinha um ar de sujeito comum e não parecia se levar muito a sério - por exemplo, promoveu um show chamado Self Aid um ano após o beneficiente Live Aid -, embora possa ter sido um dos maiores compositores do rock até hoje. The Pogues merecia muito mais reconhecimento e popularidade do que receberam ao longo de sua trajetória. Misturaram música tradicional irlandesa, principalmente, mas também de outras regiões do mundo, com o punk de forma quase transparente, de tão fluida. À primeira vista, nada poderia ser menos punk do que música folclórica, o que torna a aposta dos Pogues - e o fato de ter funcionado - ainda mais admirável. Lembra um pouco a proposta do Mangue Bit, o último movimento estético digno de nota na música brasileira.

Em seu álbum mais famoso, Rum, Sodomy and the Lash, produzido por Elvis Costello, se pode ouvir guitarras distorcidas e berros em faixas como The sick bed of Cuchulainn; cantos de bebedeira com gaitas de fole em I'm a man you don't meet everyday; um poema de Ewan McColl sobre o amor na classe trabalhadora musicado pela banda em Dirty Old Town; e uma canção de resposta escrita por Eric Bogle para uma espécie de hino informal da Austrália em And the band played Waltzing Matilda. Apesar de sua origem como um caipira irlandês nascido em Kent e de ter sido expulso da faculdade por usar drogas, era claramente um intelectual com dom para a poesia. Já no álbum If I should fall from grace with God temos um exemplo da irreverência dos Pogues, com o fenomenal dueto Fairytale of New York, uma música natalina que ironicamente se tornou seu maior sucesso.

Podem me chamar de colonizado, mas há um fundo de melancolia na música tradicional irlandesa que não desaparece nem mesmo nas canções mais animadas, nem mesmo sob as guitarras distorcidas e berros do punk rock, que me interpela em um nível profundo. Por outro lado, as letras costumam falar da luta dos trabalhadores, dos camponeses, dos marginais, contra o poder econômico e político, das quais o movimento punk é tributário. McGowan foi o pastor que celebrou este casamento.

Talvez seja apropriado encerrar este obituário com uma dose de uísque e o refrão de Sally McLennane:

We walked him to the station in the rain
We kissed him as we put him on the train
And we sang him a song of times long gone
Though we knew that we'd be seeing him again


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Henry Kissinger foi comer capim pela raiz um dia antes de McGowan, aos 100 anos de idade, e seu obituário ganhou título comportado da Folha de S. Paulo - ao contrário de Rita Lee, Aracy Balabanian e Glória Maria -, comprovando que não há justiça secular ou divina neste vale de lágrimas.

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A Câmara dos Deputados aprovou no dia 29 de novembro o projeto de lei que transforma o Dia da Consciência Negra em feriado nacional. É uma vergonha enorme para o Rio Grande do Sul que a data só passe a ser feriado por aqui por força de uma lei federal. Digo isso por estarmos na terra de Oliveira Silveira, um dos idealizadores do primeiro ato evocativo ao 20 de novembro, em homenagem a Zumbi dos Palmares, que foi realizado na capital gaúcha em 1971.

Em 2015, a Câmara de Vereadores chegou a aprovar um feriado municipal, mas a lei foi derrubada pela Justiça a pedido do Sindilojas. Uma tentativa anterior de criar um feriado no dia 20 de novembro fora também derrubada pelo TJ-RS, em 2003, a pedido da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (FIERGS). A negação ao reconhecimento da luta das pessoas negras pelo Judiciário, a pedido de empresários gaúchos, não deixa de ser uma evidência de como essa luta segue tão necessária hoje quanto era no século XIX.

Neste novembro, Oliveira Silveira recebeu título de doutor honoris causa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, instituição que tem a guarda de seu acervo. Há também um curso sobre a vida e a obra de Oliveira Silveira no Lúmina, repositório de cursos gratuitos da universidade.

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Causou alvoroço o factóide criado pelo vereador de Porto Alegre Ramiro Rosário (PSDB), que usou o ChatGPT para redigir um projeto de lei e só avisou aos colegas após sua aprovação. Não me parece um grande problema o uso de inteligência artificial para redigir rascunhos de leis, os quais são textos estruturados, formulaicos, que são analisadados por técnicos legislativos, comissões e votados em plenário. Mesmo depois de aprovados, os projetos ainda passam pelo crivo do prefeito e podem ser contestados na Justiça. O número de camadas de supervisão torna quase irrelevante a maneira como o texto inicial foi composto. A repulsa pelo uso de uma ferramenta de apoio automatizada, além disso, tem ares de romantismo e ignora a maneira como em geral as leis são gestadas, isto é, a partir de minuta produzida por algum lobista. De fato, é muito possível que a qualidade dos projetos apresentados pelos vereadores melhorasse significativamente, se todos passassem a usar o ChatGPT para redigir os rascunhos.

O verdadeiro problema neste caso foi o comportamento de moleque do vereador Ramiro Rosário, mas quanto a isso não houve nenhuma reação por parte de seus pares ou da mídia.

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O governador tucano do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, quebrou uma promessa de campanha e tenta aumentar o ICMS de 17% para 19,5%. O objetivo é "preparar" o estado para as novas regras tributárias, que devem reduzir em R$ 4 bilhões a arrecadação. Frente à rejeição generalizada por parte de sua base de apoio, Leite ameaça o empresariado com o corte de subsídios fiscais. Segundo ele, um corte de "incentivos" pela metade traria equilíbrio ao caixa gaúcho e ainda tem a vantagem de poder ser implementado por decreto.

Eliminar privilégios é uma excelente ideia e Leite devia levá-la adiante, de preferência reduzindo em 100% os subsídios. O fato de não ter feito isso em primeiro lugar, aliás, dá a impressão de que o governador tem mais apreço pelos seus apoiadores no empresariado do que pelo ideário liberal e, por isso, prefere socializar o prejuízo para todos os cidadãos.
 
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Adoro ovos pochê, mas sempre tive dificuldades para conseguir cozinhá-los em casa. Frustrado com todos os métodos disponíveis em livros e no YouTube, outro dia decidi partir para a ignorância e joguei o ovo dentro do menos recipiente apropriado para o fogão que pude encontrar. Deu certo! Aparentemente, o espaço reduzido favorece a coagulação sem a necessidade de mais firulas do que adicionar um pouco de vinagre. Portanto, recomendo uma caneca esmaltada para cozinhar ovos pochê. No início, eu colocava o ovo dentro de outro recipiente e o deitava na água com todo cuidado, mas descobri que basta quebrar direto na água fervendo. Em geral, desligo o fogo depois de alguns segundos e deixo três minutos o ovo lá, a boiar, antes de o retirar com uma colher ou escumadeira.

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Rum, sodomy and the lash, título do álbum mais importante dos Pogues, vem de uma frase atribuída a Winston Churchill. O primeiro-ministro do Reino Unido teria dito certa vez que "as únicas tradições da marinha britânica são o rum, a sodomia e a chibata". Conforme seu secretário, Anthony Montague-Browne, Churchill nunca disse nada parecido, "mas adoraria ter dito".

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Como mencionei na segunda edição do Abas Abertas, o TinyLetter estava em clima de fim de feira. Acertei na previsão e ontem anunciaram aos usuários que os serviços serão encerrados em 29 de fevereiro de 2024. Ainda estou analisando alternativas, mas é provável que migre para o Mailchimp, porque as funcionalidades de rede social e monetização do Substack me desagradam.

Abas Abertas

Por Marcelo Träsel

Rua Ramiro Barcelos, 2705 - Porto Alegre, Brasil

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