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Março 3, 2025

[Abas Abertas #16] Quem subsidia a imprevidência colhe tempestades

O governador Eduardo Leite e parlamentares gaúchos vêm promovendo lobby em favor da prorrogação do prazo de operação da usina termelétrica Candiota III, localizada no município homônimo, próximo a Bagé. Nenhum deles fez nada a respeito de encontrar soluções para a transição econômica no município e a recolocação dos trabalhadores do carvão nos últimos anos, embora os contratos de comercialização de energia estivessem para vencer no último dia de 2024 sem nenhuma sinalização de renovação por parte da Aneel. Em janeiro, o presidente Lula vetou os jabutis que estendiam a operação da usina, inseridos pelo Congresso na Lei 15.097, com a justificativa de que contrariavam o interesse público ao aumentar o valor da conta de luz para todo mundo.

A usina só é viável economicamente com subsídios da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), para a qual todos os consumidores de eletricidade do Brasil contribuem. Desde 2013, Candiota III recebeu mais de R$ 1 bilhão em subsídios custeados por todos os brasileiros, inclusive aqueles não atendidos pela empresa. De fato, mesmo sem operar, a termelétrica segue recebendo subsídios mensais superiores a R$ 12 milhões para a aquisição de carvão. Vale a pena ler o estudo de 50 páginas publicado pelo Monitor do Carvão Mineral.

A única fornecedora de carvão para Candiota III é a Companhia Riograndense de Mineração, uma empresa estatal. Sua mina em Candiota está com estudo de impacto ambiental vencido desde 2016 e foi alvo de 24 autuações da Fepam desde 2014. Apesar da usina estar parada e dos problemas ambientais causados pela mina, a CRM segue recebendo R$ 12 milhões por mês, mesmo sem precisar fornecer um quilo sequer de carvão, enquanto a termelétrica está sem contrato para fornecimento de energia. Talvez isso explique em parte o esforço do governador Eduardo Leite para manter a usina aberta.

Hoje, a termelétrica pertence à Âmbar Energia, que adquiriu Candiota III da Eletrobras em 2023, mesmo já sabendo do fim iminente dos contratos com a Aneel. Como a empresa pertence a Joesley e Wesley Batista, os infames fundadores da JBS envolvidos em diversos escândalos de corrupção, é difícil não supor que ambos esperavam prorrogar a operação promovendo lobby em Brasília. Seja como for, estão recebendo subsídios de todos os consumidores de eletricidade, sem precisarem produzir um só watt de energia.

O encerramento das atividades de Candiota III era previsível, pois a discussão sobre o custo das termelétricas a carvão para todo o sistema brasileiro vem de alguns anos. Além disso, em 2011 o IBAMA já solicitara o fechamento das usinas Candiota I e II, devido às constantes infrações aos limites de emissões de poluentes. As tragédias ambientais constantes no Rio Grande do Sul e no Brasil nos últimos anos também vinham ampliando a consciência sobre os prejuízos causados à atmosfera pelo uso de carvão como combustível.

Ainda assim, a população local, a prefeitura e o governo do Rio Grande do Sul pouco fizeram para promover uma transição econômica. A inércia é tão flagrante que até mesmo em Zero Hora, jornal amplamente simpático aos apelos de Eduardo Leite e do empresariado, colunistas se posicionaram contra a prorrogação.

O lobby em favor da extensão dos contratos de Candiota III explora o sofrimento dos trabalhadores do carvão e da usina, bem como dos outros habitantes do município dependentes economicamente de ambas as atividades. Embora as consequências para os trabalhadores eventualmente dispensados pela Âmbar e pela CRM devido ao encerramento de Candiota III sejam graves e mereçam a compaixão de todos, seus problemas poderiam ter sido amenizados com planejamento – inclusive por parte deles mesmos. Em vez disso, os sindicatos, os políticos locais e regionais, os irmãos Batista e o governo do Estado parecem ter apostado as fichas – não sem uma certa dose de razão, pois estamos no Brasil – em mais uma demonstração de leniência em relação aos imprevidentes por parte das autoridades responsáveis. Afinal, os catarinenses conseguiram manter suas termelétricas até 2040. É necessária uma “transição justa”, dizem eles.

A situação sócio-econômica de Candiota, porém, não traz qualquer evidência de justiça promovida pelo extrativismo mineral. Embora o município tenha contado com o 20º PIB per capita mais alto do Brasil e o 3º do Rio Grande do Sul em 2010, somando R$ 42,2 mil, o dinheiro não se reverteu em desenvolvimento – caso houvesse, teriam se tornado menos dependentes do trabalho nas minas e nas termelétricas e não estaríamos testemunhando a atual jeremiada. Em vez disso, Candiota está na 321ª posição em IDH-M entre os 496 municípios gaúchos, com indicadores referentes à renda (0,704) semelhantes aos de potências como Boa Vista do Incra e Campos Borges. No Censo de 2010, apenas um quarto dos jovens até 20 anos haviam completado o ensino médio, enquanto o índice GINI era 0,51 e o percentual de pobres, 14,37%. A renda per capita anual era de R$ 7.665 em 2010, ou R$ 17.105 em valores atualizados pela inflação. Enquanto isso, o PIB per capita em 2021 foi superior a R$ 282 mil.

Os dados obrigam à conclusão de que alguns habitantes podem ter se beneficiado do “progresso” trazido pela exploração do carvão em Candiota, mas a maioria da população recebeu apenas migalhas. Por outro lado, todos sofrem com a poluição da atmosfera e dos cursos de água provocados pela mineração e pela queima do combustível fóssil.

Os deputados e senadores, o governador Eduardo Leite e a elite local deveriam pelo menos ter a decência de trazer debaixo do braço um plano detalhado de transição econômica para Candiota, quando vêm pedir aos consumidores de todo o Brasil que sustentem por mais 25 anos os trabalhadores do carvão, os irmãos Batista e a CRM. De fato, os consumidores de energia já vêm fazendo exatamente isso desde 2013, quando a Lei 12.783 obrigou a CDE a reembolsar 100% dos gastos de termelétricas com combustível. Todavia, os lobistas oferecem em troca apenas uma conta de luz mais alta e as emissões de gases do efeito estufa da termelétrica mais suja do Brasil, segundo o IEMA.

Conforme um relatório do Dieese publicado em 2022, podemos considerar 732 empregos diretos vinculados à termelétrica, com média salarial para beneficiamento de carvão de R$ 6,8 mil, contra R$ 4,6 mil na extração do mineral e R$ 2,4 na geração de energia. Os salários de todos esses trabalhadores somavam R$ 1,4 milhão mensais em 2022. Ou seja, com mais ou menos um décimo do valor do subsídio seria possível fechar Candiota III mantendo todos os desempregados recebendo sua renda atual até 2050, mas sem emitir um grama sequer de gases do efeito estufa e ainda desonerando significativamente os consumidores de energia.

Não sei para vocês, mas para mim esta, sim, soaria como uma transição econômica justa.

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Enquanto políticos e empresários gaúchos promovem lobby em Brasília para manter a usina Candiota III em funcionamento, a empresa de mineração de carvão Copelmi anunciou sua desistência do projeto Mina Guaíba, após vários anos de luta dos movimentos ambientalistas gaúchos. Por volta de 2019, eu me envolvi um pouco na resistência à mineração a céu aberto do lado de Porto Alegre, pelos motivos listados neste texto. Não é apenas uma boa notícia pelas consequências materiais – ou por serem elas evitadas –, mas também porque serve como exemplo para os cínicos e derrotistas. Algumas batalhas se pode ganhar.

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O governador do Rio Grande do Sul e o prefeito de Porto Alegre viajaram para a Holanda com o objetivo de conhecer as práticas de prevenção de enchentes adotadas na região. Como de costume nessas situações, as estratégias apresentadas à comitiva poderiam ter sido aprendidas pelos administradores públicos sem precisarem sair da capital. Bastaria escutarem os “ecochatos” uma vez na vida.

Como lembrou o engenheiro Luiz Antonio Grassi, desde 1994 o estado conta com uma Política de Recursos Hídricos prevendo muitos dos mecanismos aplicados na Holanda. Eu mesmo, por volta de 2000, trabalhei no roteiro de um documentário sobre o Pró-Guaíba, no qual muitas dessas ideias estavam presentes.

Noutras palavras, os prejuízos mais graves das enchentes dos últimos dois anos poderiam ter começado a ser evitados 30 anos atrás – curiosamente, o mesmo intervalo de tempo no qual os holandeses afirmam terem promovido uma transformação em sua relação com os cursos de água.

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Em 25 de fevereiro se completaram 50 anos desde que estudantes da UFRGS subiram em árvores em frente à Faculdade de Direito para impedir seu corte. O prefeito Thompson Flores foi obrigado a mudar o traçado da avenida João Pessoa e as árvores estão lá até hoje. O evento foi um marco para a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, talvez a mais longeva organização ecologista do mundo.

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A PGR denunciou 54 financiadores do golpe pelo vandalismo na Praça dos Três Poderes. Como gaúcho, achei surpreendente apenas duas pessoas do estado constarem na lista, mas não fiquei nada surpreso com o fato de uma delas ser residente em Caxias do Sul e a outra, em Bento Gonçalves. A Serra Gaúcha sempre foi a região mais à direita no espectro político.

Um deles, Cesar Pagatini, se apresenta como Tio Baga nas redes sociais e é proprietário de uma empresa de publicidade chamada Coneex. Ele é acusado de fretar um ônibus para levar golpistas a Brasília, mesma situação de Sheila Ferrarini. A maior parte dos outros acusados é do Sudeste.

Infelizmente, nenhum peixe realmente grande está implicado como financiador do golpe. Ou personagens como o Véio da Havan e Otávio Fakhoury não materializaram suas palavras em dinheiro para os movimentos de extrema-direita, ou a PGR resolveu evitar conflitos para acelerar a punição de Bolsonaro e seus asseclas mais próximos – alguns militares parecem ter sido poupados num movimento de mesmo sentido.

A lista de denunciados me parece formada por gente de classe média fracassada e desavisada, não pelos reais mentores do golpe. Por outro lado, a busca de justiça necessariamente será frustrante neste caso, porque os principais responsáveis por criar o ambiente propício aos eventos de 2022 se escondem atrás de ações indiretas. Como escrevi na última edição deste Abas Abertas, em outubro passado:

O Rio Grande do Sul talvez tenha sido o berço da atual onda de reacionarismo pela qual o país vem passando. Sob o disfarce do liberalismo, organizações como o Instituto Millenium, o Instituto de Estudos Empresariais, o Instituto Cultural Floresta e o Fórum da Liberdade vêm acolhendo e multiplicando a ideologia de extrema direita desde o final dos anos 1980. A família Ling é uma das principais responsáveis por esse movimento, com participação, patrocínio ou apoio dos Gerdau, Sirotsky, Biedermann, Vontobel, Druck, Goldsztein, Isdra, Boff e outras dinastias afortunadas.

Quanto a essas pessoas, nossa única esperança de justiça é a História. Sejam seus nomes inscritos nos anais da infâmia para sempre.

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A submissão patética dos bilionários do Vale do Silício ao presidente Trump mereceria uma série de comentários sobre uma diversidade de aspectos e oportunamente devo retornar ao tema, mas, por enquanto, gostaria apenas de recomendar o excelente resumo produzido por John Oliver sobre as novas políticas da Meta.

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A série de animação Pantheon, disponível no Netflix, é uma boa indicação para quem quiser conhecer um pouco da filosofia transhumanista esposada pelos tech bros do Vale do Silício. Além disso, traz uma discussão razoavelmente sofisticada sobre as questões éticas e existenciais levantadas por tecnologias como digitalização da mente humana ou a criação de inteligências artificiais sencientes. Acima de tudo, é um ótimo thriller de ficção científica.

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Nos últimos meses, vim lendo a trilogia sobre colonização do espaço escrita pelo britânico Adrian Tchailovsky e composta pelos romances Herdeiros do tempo, único traduzido para o português até o momento, Children of ruin e Children of memory. O grande mérito do autor, cuja formação universitária foi em zoologia e psicologia, é especular outras mentes, como as de insetos, moluscos, fungos, aves e computadores, bem como as diferentes organizações sociais delas decorrentes. Os livros também discutem as possibilidades e limites da evolução em ambientes alienígenas. Por exemplo, um dos melhores momentos se dá quando uma civilização matriarcal de aranhas inteligentes descobre a utilidade das formigas para computar, ou quando um plasmódio infecta um ser humano, tem contato com memórias sobre a vastidão do espaço e decide usar o novo corpo para embarcar numa aventura.

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Este boletim ficou em suspenso por quase meio ano. A edição número 15 foi enviada em outubro de 2024, logo após as eleições municipais. Nenhuma periodicidade jamais foi prometida, mas de alguma forma me sinto na obrigação de fazer este registro e pedir desculpas a quem eventualmente tenha sentido falta do Abas Abertas. Espero voltar a escrever mais ou menos uma vez por mês.

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Nas últimas edições de Abas Abertas, venho recomendando boletins por correio eletrônico que costumo ler. Desta vez, minha indicação é o Mercurius Delirans, escrito pelo doutor em língua suméria Adriano Scandolara. Mais conhecido nas redes sociais como o lendário Abstrusivo, o autor trata de assuntos relacionados à história da literatura, sem periodicidade definida. Aproveitando o período de carnaval, recomendo também o seu livro de poesia épica Momo rei, publicado em 2023.

Abas Abertas

Por Marcelo Träsel

Rua Ramiro Barcelos, 2705 - Porto Alegre, Brasil

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