[Abas Abertas #15] Faraó de Pinheiros vence o primeiro turno das eleições no Sindustão
Muita gente se supreendeu com a votação recebida por Sebastião Melo, quase reeleito em primeiro turno no dia 6 de outubro, mesmo depois de ter demonstrado enorme incompetência ao lidar com os desastres climáticos que atingiram Porto Alegre durante seu mandato. O pesquisador do Observatório das Metrópoles André Augustin publicou um cordel no Blue Sky com mapas e tabelas descrevendo o desempenho dos candidatos ao Paço Municipal, nos quais se pode constatar a vitória do atual prefeito mesmo em bairros muito atingidos pelas águas e que, quase meio ano depois, ainda aguardam a finalização dos serviços de limpeza, como o Sarandi.
Faz sentido?
Um dado mencionado por colunistas à esquerda e à direita em busca de explicação foi o alto índice de abstenções: um terço dos porto-alegrenses não apareceram em suas seções eleitorais. Os ausentes foram 345.544, enquanto o candidato à reeleição obteve 345.420 votos – 124 a menos. O pico das abstenções em pleito municipal se deu em 2020, durante a pandemia de covid-19, quando 358.217 cidadãos deixaram de exercer seu direito. No último dia 6 de outubro houve um aumento de 24,5% nas ausências, em comparação com 2016, quando 277.521 eleitores se abstiveram.
Todavia, a pirâmide etária da capital mudou significativamente e o número de pessoas com mais de 70 anos, para os quais o voto é facultativo, subiu de 126.967 em 2016 – dos quais 71.492, ou 56,3%, deixaram de comparecer às urnas – para 170.414 em 2024, um crescimento de 34,2%. Os dados são do TSE e ainda não estão atualizados para este ano, mas, fazendo uma conta de padeiro, podemos projetar, a partir da proporção de 2016, uma abstenção de 96 mil idosos com mais de 70 anos no primeiro turno de 2024. Além disso, ao longo desses oito anos o número total de aptos a votar se reduziu em 2 mil pessoas, provavelmente devido ao impacto da covid-19. Esses dois fatores poderiam explicar, então, pelo menos 27 mil das 68 mil abstenções a mais em 2024.
Se levarmos em conta o desalojamento, a emigração e outras dificuldades causados pelas enchentes aos eleitores flagelados pelas águas, talvez uma boa parte das outras 41 mil ausências possa ser explicada. Para se ter um parâmetro, a Prefeitura registrou 20.781 moradias atingidas pelas inundações de maio. Podemos supor que a maioria delas abrigasse pelo menos duas pessoas com idade suficiente para votar. Se metade dessas pessoas extraviou documentos, foi morar com parentes no interior ou perdeu as condições existenciais para ir à seção eleitoral, mais umas 20 mil abstenções poderiam ser explicadas. O crescimento das ausências no pleito atual ainda seria significativo, mas bem menos dramático.
Mesmo se a desilusão com a política partidária fosse o principal fator para o aumento das abstenções, ainda assim seria preciso explicar os motivos pelos quais os porto-alegrenses que se deram o trabalho de ir até as urnas concederam a Sebastião Melo mais votos do que para suas duas principais concorrentes somadas. Francamente, não tenho uma hipótese sólida a respeito para oferecer. Há anos tento entender como este mesmo grupo político se mantém na Prefeitura desde 2005, pois as gestões de Fogaça (MDB), Fortunati (PDT), Marchezan (PSDB) e Melo (MDB) não se destacam por melhorias significativas para a capital gaúcha.
Poderíamos denominar este grupo de Sindustão, em homenagem ao Sindicato da Indústria da Construção Civil do Rio Grande do Sul (Sinduscon). Juremir Machado da Silva os chamava de Xiitas do Concreto, uma ótima alcunha, mas Sindustão tem a vantagem de dar nome aos bois e soar um pouco como Centrão, cujos partidos costumam compor o Sindustão.
O apoio do empresariado e da mídia a esta malta representante de interesses das construtoras se baseia em um suposto compromisso destes políticos com a eficiência, qualidade da qual as gestões petistas careceriam, segundo o discurso do Sindustão, ao longo de seus 16 anos na praça Montevidéu. Todavia, os ocupantes do cargo nos últimos 20 anos realmente demonstraram uma competência administrativa superior às de Olívio Dutra, Tarso Genro, Raul Pont e João Verle? O discurso sobre eficiência não seria apenas isso – discurso?
Um bom contraponto são as obras da Copa do Mundo no Brasil, que deveriam ter sido entregues até junho de 2014. Porto Alegre recebeu uma visita da FIFA em 2007, durante o mandato de Fogaça, e foi oficializada como uma das sedes em 2008. Portanto, ele e Fortunati tiveram seis anos para construir viadutos, duplicar avenidas e outras melhorias. Das 19 obras previstas, todavia, apenas seis ficaram prontas a tempo da Copa do Mundo. O aprimoramento da Voluntários da Pátria e a passagem de nível na esquina da Plínio com a Carlos Gomes foram abandonadas. A duplicação da avenida Tronco foi entregue com dez anos de atraso.
Os supostamente maus gestores petistas, por outro lado, construíram toda a Terceira Perimetral, cujos trabalhos começaram em 1999, e a deixaram pronta para o emedebista Fogaça inaugurar em 2006. A obra incluiu a construção de seis viadutos e se estendeu do aeroporto até o morro Teresópolis, cortando Porto Alegre de norte a sul por mais de 12 quilômetros. É um empreendimento comparável às obras da Copa de 2014 e foi realizado com velocidade muito maior.
Ao contrário das declarações do vereador Ramiro Rosário (Novo), ex-diretor do Departamento de Esgotos Pluviais, e do prefeito Sebastião Melo após as enchentes de 2024, as gestões petistas investiram no setor, ao planejarem e iniciarem a maior obra de saneamento da história da capital, o Programa Integrado Socioambiental (PISA) em 2002 – finalizada em 2014, no mandato de Fortunati. Apesar de sua dimensão, o PISA também levou menos tempo para ser realizado do que as obras da Copa de 2014 – provavelmente, por ter se baseado em anos de planejamento dos prefeitos do PT sobre a gestão da bacia hidrográfica, com projetos como o Pró-Guaíba.
O grupo atualmente na Prefeitura também se diz representante dos empresários e comerciantes, mas ao longo de seus cinco mandatos só se viu crescimento da franquia “aluga-se” nos principais eixos de comércio de Porto Alegre. Sob o PT, o centro da cidade era uma região vibrante. Hoje, a rua dos Andradas parece ter sido palco de um evento apocalíptico. O mesmo se pode afirmar de outros antes importantes eixos de comércio, como as avenidas Independência, Farrapos, Osvaldo Aranha, Protásio Alves, 24 de Outubro, Lima e Silva.
O próprio Mercado Público, o maior patrimônio histórico do comércio e centro do turismo na capital, sofreu um incêndio em 2012, ainda sob Fortunati, e sua recuperação só terminou dez anos depois, já sob Melo. O tucano Marchezan, prefeito mais supostamente liberal desde a redemocratização, pouco demonstrou eficiência e vontade política para devolver o prédio aos empresários e à população.
É realmente difícil de compreender como os comerciantes e profissionais liberais dessas regiões seguem elegendo representantes do Sindustão após essas duas décadas. Os proprietários de lojas e escritórios perderam muito dinheiro com a desvalorização de seus imóveis frente à inflação, conforme dados da própria Prefeitura, devido ao abandono do Centro e dos outros eixos de comércio. Ainda assim, a julgar por suas manifestações públicas, muitos parecem considerar o regime venezuelano e a ideologia de gênero como os principais problemas de Porto Alegre.
Um possível motivo para essa dissonância cognitivo-eleitoral pode ser a resposta típica do Sindustão para todo e qualquer problema da cidade: “o mercado resolve”. Os pequenos empresários ficam felizes com menos restrições urbanísticas e ambientais às suas atividades, sonham com a possibilidade de ganhar espaço público quase de graça adotando uma pracinha, planejam vencer uma licitação quando algum serviço é terceirizado – mesmo se, no fim das contas, tudo isso contribuir para a degradação geral de Porto Alegre enquanto cidade e, consequentemente, para a redução populacional que coloca em risco seus próprios negócios.
Os únicos felizes com o Sindustão deveriam ser os associados do próprio Sinduscon e os profissionais de áreas correlatas, como engenharia e corretagem de imóveis, pois a solução encontrada por Melo e Marchezan para reverter a deterioração urbana é permitir a construção de cada vez mais prédios, cada vez mais altos. Embora possa reunir menos eleitores do que as demais atividades econômicas somadas, o Sindustão agrega os interesses dos ricos em geral, porque eles investem sua mais-valia em imóveis. Um bom exemplo é a família Sirotsky, proprietária das empresas de mídia RBS TV, Zero Hora e Rádio Gaúcha, entre outras, mas cujos sócios destinam seus dividendos e pro-labores a investimentos imobiliários. O mesmo vale para qualquer sobrenome frequente nas colunas sociais.
Em suma, apesar de se dizerem técnicos, o empresariado e os profissionais liberais não ligados ao ramo da construção civil vêm agindo sobretudo a partir de uma perspectiva ideológica. Em 2004, talvez fizesse sentido uma renovação no Paço Municipal após 16 anos consecutivos de gestões do PT. Muitos eleitores nem mesmo deviam se lembrar de como era Porto Alegre na época de Alceu Collares e o desgaste da imagem, mesmo em boas gestões, é compreensível. Incompreensível é a incapacidade de enxergar a incompetência do Sindustão depois de todos esses anos e buscar alternativas.
É claro, o Sindustão oferece um simulacro de renovação. Alguns leitores talvez não considerem Marchezan, por exemplo, um representante do grupo. No frigir dos ovos, porém, ele contou com a mesma base na Câmara de Vereadores, nomeou secretários dos mesmos partidos e deu continuidade às mesmas políticas de Fogaça, Fortunati e Melo. Principalmente, defendeu os mesmos interesses econômicos destes outros três prefeitos. Na melhor das hipóteses, sua diferença em relação a eles é equivalente às diferenças entre as tendências Construindo um Novo Brasil e Mensagem ao Partido dentro do PT.
A permanência dos partidos da centro-direita na Prefeitura me parece ser um efeito da politização da classe média via movimentos de extrema direita nos últimos dez anos. Olavo de Carvalho talvez tenha sido o ativista político brasileiro que melhor entendeu o conceito de hegemonia de Gramsci, a julgar por sua habilidade em operacionalizá-lo – ironicamente, o pensador comunista italiano era um dos alvos preferidos de críticas do Faraó de Pinheiros. Suas técnicas de construção de hegemonia foram profissionalizadas pela produtora de vídeos de propaganda extremista Brasil Paralelo, criada com investimentos da família Gerdau.
O Rio Grande do Sul talvez tenha sido o berço da atual onda de reacionarismo pela qual o país vem passando. Sob o disfarce do liberalismo, organizações como o Instituto Millenium, o Instituto de Estudos Empresariais, o Instituto Cultural Floresta e o Fórum da Liberdade vêm acolhendo e multiplicando a ideologia de extrema direita desde o final dos anos 1980. A família Ling é uma das principais responsáveis por esse movimento, com participação, patrocínio ou apoio dos Gerdau, Sirotsky, Biedermann, Vontobel, Druck, Goldsztein, Isdra, Boff e outras dinastias afortunadas.
Além disso, a partir dos anos 1970 os gaúchos passaram a colonizar o Centro-Oeste, fizeram uma curva ao chegar na floresta amazônica e hoje estão devastando o cerrado do Matopiba para plantar soja e criar gado. Levaram consigo, além dos Centros de Tradições Gauchescas e o hábito do chimarrão mesmo no calor escaldante, uma boa dose de conservadorismo, que segue sendo alimentado por seus contatos sociais com o sul do Brasil. Os lucros obscenos gerados pela soja na última década foram o combustível para vários movimentos de extrema direita, em particular o bolsonarismo.
O resultado é uma capilarização de ideologias reacionárias, ou abertamente fascistas, na maior parte do país. A máquina de propaganda da direita neoliberal soube usar as redes sociais para se imiscuir no cotidiano dos brasileiros e agendar o debate público – e também o privado, como evidencia uma anedota recente envolvendo minha sobrinha e minha filha.
Ambas estavam aproveitando a área de lazer do condomínio onde meu irmão vive, quando viram um menino de cerca de dez anos insultar uma vizinha um pouquinho mais velha, com base no fato de ela ser filha de um casal de lésbicas. “Você não tem figura paterna para ensinar as coisas, não tem família”, disse o menino. A altercação escalou e ele acabou dando um soco na cara da menina, cujo nariz sangrou. Depois, os pais do pivete reclamaram por estarem sendo tachados de extremistas de direita homofóbicos no condomínio.
Poderia falar desse caso horrível a partir de várias dimensões, mas o ponto para o qual eu gostaria de chamar a atenção é o discurso do agressor, que, com dez anos de idade, certamente não o formulou sozinho – nenhuma criança dessa idade usa a expressão “figura paterna”. Provavelmente, esse tipo de prédica faz parte da conversação em sua casa e ele acabou absorvendo a doutrina heteronormativa de seus pais, junto com sabe-se lá quais outros elementos das ideologias de extrema direita. Essa dinâmica com certeza se repete na maioria das famílias, a julgar pelas manifestações de meus parentes em almoços de domingo e grupos de WhatsApp.
Quando eu era jovem, acontecia o contrário: princípios ideológicos da esquerda é que pautavam as conversas privadas. Enfrentavam resistência, é claro, mas estavam presentes, tensionando a visão de mundo conservadora de quase toda a classe média. A maior derrota da esquerda desde a redemocratização foi ter perdido o espaço para a direita na agenda pública. A sucessão de incompetentes do Sindustão eleitos para a prefeitura de Porto Alegre talvez se deva menos a uma desilusão dos eleitores com a política – embora este seja um fator relevante – e mais ao sucesso da máquina de propaganda da direita neoliberal.
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Falando em Marchezan, o ex-prefeito ao menos teve o mérito de fazer uma proposta ousada para a mobilidade urbana de Porto Alegre. Uma das ideias, a substituição do vale-transporte por uma taxa a ser paga por todos os empregadores, foi inclusive adotada pela campanha de Maria do Rosário. Infelizmente, o tucano perdeu apoio da base devido à própria inabilidade política e as propostas abaixo já eram natimortas quando chegaram à Câmara:
Institui a Taxa de Mobilidade Urbana (TMU) - (PLCE nº 2/2020) - Empregadores não irão mais comprar vale- transporte (custo médio mensal aproximado de R$ 240,00), passando a pagar uma taxa para todos os seus empregados (estimativa de custo mensal de R$ 89,00 a R$ 116,00).
Autorização ao Executivo para conceder desconto tarifário (PLE nº 2/2020) - A medida permite reduzir o valor da tarifa fora do pico para incentivar a utilização do transporte coletivo.
Autoriza o Executivo a conceder subsídio para diminuição do valor da tarifa (PLE nº 3/2020) - Autoriza a concessão de subsídio, inclusive cruzado, ao transporte público, assegurando a modicidade das tarifas e a preservação do equilíbrio econômico-financeiro nos contratos de concessão.
Criação da Tarifa de Uso do Sistema Viário (PLE nº 1/2020) - Tarifa de R$ 0,28 por km/rodado para as empresas de transporte por aplicativos pelo uso do sistema viário.
Tarifa de congestionamento (PLCE nº 1/2020) - A nova proposta prevê cobrança de tarifa de congestionamento no Centro de Porto Alegre.
Quando o prefeito do Sindustão tenta acertar, seus apoiadores não deixam.
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A inteligência artificial ressuscitou a energia nuclear. Enquanto o Google vai passar a comprar energia de uma empresa que opera reatores privados, a Microsoft pretende revitalizar um reator desativado em Three Mile Island, local do terceiro pior acidente nuclear da história. Tudo isso para alimentar os geradores de banalidades eleitos pelo mercado financeiro como a tecnologia do futuro deste ano e, talvez, do próximo. O tempora! O mores!
Muito embora me inclua nas fileiras ambientalistas, sou favorável à energia nuclear. Apesar da tragédia de Chernobyl e do desastre de Fukushima, considero a radiação uma alternativa limpa e segura para o fornecimento de eletricidade em regiões nas quais uma usina hidrelétrica, eólica ou solar são inviáveis. Além disso, podem ter menos impacto em termos da área comprometida e da poluição visual.
Justamente por ser favorável desde sempre, vejo com indignação os reatores nucleares sendo retomados como opção aceitável para a produção de energia apenas quando a meta se tornou alimentar a roupa nova dos reis do Vale do Silício.
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“O primeiro cu de dinossauro jamais encontrado está iluminando lá onde o sol não bate.”
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O podcast Who shat on the floor at my wedding traz uma sátira das séries sobre crimes hediondos que parecem ter tomado conta dos streamings ao, como sugere o nome, investigar qual convidado cagou no chão durante o casamento das apresentadoras. Em alguns momentos, é hilariante. O sotaque kiwi da “detetive” Lauren Kilby, no entanto, pode ser um pouco desafiador até para quem domina bem o inglês.
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Por Marcelo Träsel
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