Abas Abertas

Inscrever-se
Arquivo
Julho 25, 2024

[Abas Abertas #13] Meu pé de Edelweiß

Neste 25 de julho se comemora o bicentenário da imigração alemã no Brasil. Como sugere o sobrenome Ruschel Träsel, sou descendente de colonos emigrados da Alemanha, mais precisamente do Hunsrück, uma área perto da fronteira com a França. Meus ascendentes Ruschel se estabeleceram nos vales dos Sinos e do Caí, ao pé da Serra Gaúcha, enquanto os Träsel foram para o vale do Taquari. Alguns Ruschel foram para lá, também, e meus avós nasceram em Estrela, Arroio do Meio e Santa Clara.

Alguns anos atrás, tive o privilégio de visitar Sehnheim am Mosel, localidade de onde provêm os Träsel. É um lugar muito parecido, em termos de geografia, com os vales onde os colonos se instalaram. Ao mesmo tempo, a suposta cultura alemã é muito diferente de sua representação pelos descendentes aqui no Rio Grande do Sul. Em vez de cerveja, se bebe vinho branco. A indumentária tradicional não tem os ridículos calções de couro bávaros, nem chapéus tiroleses. O chucrute está presente, mas é um prato tradicional dividido com a França e seu choucroute à l’alsacienne.

Muitos aspectos da “cultura alemã” no sul do Brasil têm tanta correspondência com a realidade quanto a “cultura gaúcha” inventada por Paixão Côrtes e seus amigos do Movimento Tradicionalista no século XX. Por outro lado, os traços de fato oriundos da Renânia-Palatinado, como o dialeto Hunsrückscher e alguns costumes sociais, são uma curiosidade para os alemães de fato e de direito, pois ficaram congelados no século XIX. Para um jovem alemão contemporâneo, uma visita ao vale do Taquari é mais ou menos como nós encontrarmos uma tropeada levando um carregamento de charque através de um glamping em São Francisco de Paula.

Os traços mais interessantes da cultura teuto-brasileira talvez sejam os menos celebrados. Poucos descendentes de colonos demonstram orgulho por inovações como o crêm, um substituto para a raiz-forte, tempero favorito na Alemanha, que os imigrantes provavelmente aprenderam a usar com os indígenas do Rio Grande do Sul. Ou pelo maravilhoso pão de aipim. Ou pelo fato de Nova Petrópolis ser o berço do cooperativismo no Brasil. Ou por descendentes de alemães como o químico José Lutzenberger e o padre Arnildo Fritzen estarem nas origens de uma das associações ambientalistas mais antigas do mundo, a Agapan, e do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra.

A cultura colonial alemã, para mim, não está representada pela Oktoberfest — uma tradição da Bavária, realizada pela primeira vez para celebrar o casamento do príncipe herdeiro e futuro rei Ludwig I, em 1810, poucos anos antes da primeira leva de imigração para o Brasil — ou pela lamentável armadilha turística que é Gramado. Prefiro o clêss, a cuca de uva, as sociedades de canto coral encontráveis em qualquer vilazinha onde haja colonos, o Kerb, a polonese, os jardins floridos e, sobretudo, o sentido de comunidade típico dos agricultores familiares e cidades pequenas. Em resumo, a minha teuto-brasilidade é uma cultura caipira que fala Hunsrückscher.

𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗

As celebrações pelo bicentenário me parecem um pouco mornas, talvez porque as enchentes tenham atingido com força esses vales e não haja muito clima para festivais. O próprio governo germânico não parece muito engajado no assunto, a julgar pela ausência de programação a respeito no Instituto Goethe, exceto pela exposição fotográfica Pequena Alemanha.

Por outro lado, talvez os teuto-brasileiros receiem demonstrações públicas orgulho, por razões que qualquer pessoa com conhecimento da história do século XX pode supor. Infelizmente, muitos descendentes germânicos são chauvinistas e uma parte significativa esposa ideais abertamente nazistas. Este é outro aspecto no qual a própria Alemanha evoluiu e os descendentes dos imigrantes ficaram congelados no tempo.

Conforme historiadores como René Gertz e Eliane Bisan Alves, a eventual simpatia por Hitler na colônia alemã era devida mais a uma certa nostalgia e idealização da antiga pátria do que a uma subscrição aos princípios ideológicos do nazismo. A maioria dos teuto-brasileiros não conhecia o programa político do nacional-socialismo, mas reconhecia o investimento de agentes e empresários ligados ao partido em instituições como clubes de tiro e caça e igrejas, entre outras atividades queridas dos descendentes germânicos. Embora a filiação ao partido nazista do Brasil tenha sido pouco expressiva entre os colonos e se concentrado em São Paulo, especialmente entre os funcionários de empresas cuja matriz ficava no Reich, Hitler era tido por muitos como o herói de seu modelo de nação.

Ano passado, a escritora e colunista da Folha de S. Paulo Giovana Madalosso foi considerada leviana e recebeu uma saraivada de críticas por considerar uma manifestação nazista os telhados com a palavra “Heil” que viu em Urubici. Conforme se apurou depois, o sobrenome do proprietário é Heil e a justificativa para as telhas incomuns seria orientar hóspedes das casas. Tenho dificuldades em ser convencido por essa explicação, pois qualquer colono conhece muito bem a carga semântica dessa palavra. Na melhor das hipóteses, nem a família Heil, nem ninguém mais na cidade se importou muito com a possível leitura dos telhados como uma expressão nazista.

Lembro de um sujeito em Santa Cruz do Sul que andava pela cidade com boné da Afrika Korps e uma Luger P08 na cintura, como se fosse o próprio Rommel, sem causar qualquer espanto. Os livros de S. E. Castan — apresentando títulos discretos como Acabou o Gás!... O Fim de um Mito e Holocausto: Judeu ou Alemão? Nos Bastidores da Mentira do Século — circulavam tão livremente por Lajeado que folheei ambos quando era adolescente. Um certo clube vinculado aos colonos alemães em Porto Alegre está até hoje decorado com o mapa do Reich anterior à I Guerra Mundial.

Se é para se inspirar na Alemanha, faríamos melhor em nos inspirar em Wolfgang Goethe, em Alexander von Humboldt, em Rosa Luxemburgo, em Fritz Lang, em Bertolt Brecht, em Pina Bausch. Deveríamos torcer para o Fußball-Club St. Pauli em vez do Bayern de Munique. De fato, se pudesse escolher qualquer época e lugar para viver, provavelmente seria a hedonista e radical Berlim dos anos 1920.

𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗

A minha cultura alemã está cristalizada no verso “as amarras ninguém consegue trançar, que possam meus pensamentos aprisionar”. A frase vem de um dos primeiros registros da canção folclórica Die Gedanken sind frei, conhecida desde o século XIII. A versão cantada 200 anos atrás pelos imigrantes recém-chegados ao Brasil continha a seguinte estrofe:

Die Gedanken sind frei
Wer kann sie erraten?
Sie fliehen vorbei
Wie nächtliche Schatten
Kein Mensch kann sie wissen
Kein Kerker verschließen
Wer weiß, was es sei?
Die Gedanken sind frei

Ou, em tradução livre e sem métrica para o português:

Os pensamentos são livres
Quem os pode adivinhar?
Eles passam voando
Como sombras noturnas
Ninguém pode depreendê-los
Nenhum cárcere detê-los
Quer saber qual é a boa?
Os pensamentos são livres

𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗

Nos anos finais da II Guerra Mundial, quando o governo de Getúlio Vargas finalmente decidiu se alinhar aos aliados, as expressões culturais alemãs foram proibidas no Brasil, inclusive a língua. Quem infringisse as regras poderia ser enviado a um “campo de internamento” ou a um presídio comum. Isso era um problema, porque muita gente nas pequenas cidades nem mesmo falava outro idioma que não o alemão.

O governo, é claro, não desconfiava dos descendentes de alemães sem alguma dose de razão. Empresários como o fundador da Varig, Otto Ernst Meyer, colaboravam com o regime nazista. Poucos habitantes do vale do Taquari ou dos Sinos lamentariam uma vitória do Eixo. As prisões foram com certeza em sua maioria abusivas, como aconteceu com os japoneses nos Estados Unidos, mas é o tipo de violação de direitos humanos vista em todas as guerras.

Mesmo com a proibição, meu bisavô costumava ouvir as emissoras alemãs em seu rádio de ondas curtas. Uma noite, meu tio-avô, que havia servido o Exército, vestiu sua farda, saiu pela porta de trás da casa e foi bater com força na porta da frente, gritando algo como “abram a porta, sabemos que estão ouvindo rádios alemãs aí dentro!”. Meu bisavô quase infartou.

𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗

Por falar em pregar peças, uma das minhas tradições favoritas da colônia alemã é a caçada ao Thiltapes, na qual um recém-chegado à região é convidado a acompanhar os nativos ao mato, à noite, para caçar o fugidio animal. O novato é orientado a segurar um saco de aniagem aberto, enquanto os mais experientes se embrenham entre as árvores para espantar o Thiltapes em direção à boca do saco e capturá-lo.

O fim da história vocês podem imaginar.

𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗

Meu avô materno foi piloto da Varig. Passou alguns anos em São Paulo estudando mecânica de automóveis, trabalhou por um tempo como caminhoneiro e acabou se interessando pela novidade da aviação. Minha bisavó deixou uma autobiografia em três volumes manuscritos, na qual descreve o casamento de sua filha com o meu avô:

Nada de anormal aconteceu até o mês de fevereiro de 1952, data marcada para o enlace dos noivos. Seria no dia dois, dia de Nossa Senhora dos Navegantes.

Carlos conseguiu uma boa casa perto do aeroporto [de Porto Alegre], na rua Onze de Agosto. Casa muito boa, recém construída, possuindo um jardim com belas flores. Uns dias antes, fomos lá para limpá-la e arrumá-la. Compramos cortinas, tapetes e tudo o mais que faltava para o complemento da casa.

Ao lado, havia roseiras de todas as cores. Uma trepadeira com rosas amarelas, embaladas pelo vento, estavam abertas numa sinfonia de cores. Dezenas de botões debruçavam-se para a entrada da área que havia na frente. A dona que lá morreu plantou os canteiros com carinho e capricho, pois tudo ali demonstrava bom gosto e muito cuidado.

Voltamos poucos dias antes do casamento, deixando tudo arrumado e limpinho.

Chegou o dia marcado. Choveu muito naquele dia. Cláudio entrou na igreja todo orgulhoso, levando pelo braço a sua filha meiga e querida. Nossa casa, bem grande e espaçosa, não teve problema em abrigar os convidados. Nas peças foram colocadas mesas para dispor os doces e salgados, bebidas, refrigerantes etc.

Estava combinado de partirem após a cerimônia e os comes e bebes viajarem de avião a Porto Alegre, mas parecia que o plano não iria dar certo, pois a chuva não parava. Os convidados ficaram amontoados dentro de casa. O pátio fora preparado para dar lugar às pessoas que preferissem a sombra de uma parreira, se o calor fosse abrasador, mas o belo lugar no terraço não foi possível alguém aproveitar, devido às chuvas.

Poderiam os noivos seguir viagem com esse tempo? Essa pergunta era feita pelos presentes, assim como pelos próprios interessados na viagem para o ninho que os esperava. Já eram sete horas quando, de mansinho, o tempo foi limpando, dando lugar a um restinho de sol de verão, para assim poder decolar o aparelho.

Estava tudo preparado para a partida. Alguns queriam acompanhá-los até a pista. Outros queriam ficar e assistir à passeata do avião pela cidade e aparar o buquê da noiva, que ela atiraria lá do alto.

Depois de duas voltas por cima da casa, Claudete atirou suas flores brancas, que foram cair no pomar da nossa primeira vizinha, em cima de um pé de pessegueiro. Algumas moças gritavam, lançando seus braços para os ares, como querendo agarrá-los para si. Carlos, que pilotava o avião, não fez muito lero-lero, pois o sol já ia morrendo aos poucos, dando lugar ao crepúsculo que vinha descendo. Enquanto o poente começava a avermelhar-se, eles iam se afastando como um pássaro no horizonte.

𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗

A minha bisavó Violeta, autora do trecho acima, levou uma vida difícil. Seu pai era proprietário de uma fábrica de móveis em São Leopoldo, uma ocupação típica de colonos. Certa noite, a loja pegou fogo. Ao constatar que havia perdido tudo, ele infartou e morreu. A viúva não tinha como sustentar os filhos e, numa atitude comum para a época, espalhou as crianças entre os parentes e conhecidos.

Violeta acabou indo viver com uma madrinha em Bom Retiro do Sul, na época parte do município de Estrela. Essa madrinha era uma mulher progressista para a época, pois havia se formado dentista e tinha uma espécie de casa de saúde à beira do Taquari, onde, além de tratamentos odontológicos, eram oferecidos serviços como sauna e outras terapias ligadas à água.

À primeira vista, parece bom, mas na verdade as crianças nessa condição eram tratadas como empregadas, mesmo se fossem parentes. Quando um sujeito “bem-nascido” se engraçou com a minha bisavó, em vez de uma das filhas da madrinha, ela foi proibida de se casar com ele. Acabou contraindo matrimônio com um caixeiro viajante e levando uma vida remediada, na melhor das hipóteses.

Das três filhas, duas morreram afogadas no rio Taquari. Sobraram a minha avó e um tio-avô.

Noutra ocasião compartilharei essa história. Venho transcrevendo sua autobiografia e pretendia estar com ela terminada até o dia do bicentenário, como minha forma particular de comemorar. Todavia, as enchentes que se abateram em maio sobre o Rio Grande do Sul prejudicaram o projeto.

𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗

O único intelectual produzido pela minha família de imigrantes pequenos agricultores e comerciantes nos primeiros 100 anos desde a chegada ao Brasil foi o meu tio-avô, Albert Träsel, um padre jesuíta que se dedicava principalmente à história. Publicou em 1965 o livro Der Maragatenkrieg auf den deutschen Kolonien von Rio Grande Do Sul, que relatava o impacto da Revolução Federalista — a infame revolta da degola — sobre as colônias alemãs gaúchas. Virou nome de rua em Montenegro e de uma biblioteca pública em Paverama.

Infelizmente, morreu antes de eu nascer.

𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗

Nos finais de semana em que acompanhava meu pai a Lajeado, onde não tinha primos nem amigos da minha idade, passava as horas de tédio na biblioteca da casa. Meu avô paterno parecia acreditar muito no valor da educação, pois havia adquirido para seus sete filhos diversas enciclopédias, inclusive a Brittanica em inglês. Minha favorita era a Conhecer, com suas ilustrações e infográficos riquíssimos.

Todavia, gostava mesmo era de ler os dez volumes de Contos maravilhosos, infantis e domésticos dos Irmãos Grimm. Devo ter passado por todos eles pelo menos umas vinte vezes ao longo do tempo. A falecida editora Cosac e Naify publicou uma edição muito bem feita em dois volumes, que hoje com alguma sorte se encontra nos sebos. A coleção em dez volumes da casa do meu avô, publicada nos anos 1960, lamentavelmente se perdeu. Gostaria muito de tê-la comigo.

𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗

O jornalista Moacir Fritzen, do jornal ABC Mais, sediado em Novo Hamburgo, está compilando 200 curiosidades sobre a imigração alemã, para homenagear o bicentenário.

𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗

O fotógrafo Fernando Schmitt produziu um livro sobre a história de sua família em Novo Hamburgo, que traz muitas imagens antigas, informações sobre a fundação da cidade, sobre a imigração alemã para o Vale dos Sinos e sobre o cotidiano das colônias. Vale a leitura, mesmo sem ter Schmitt no sobrenome.

𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗𝔗

Venho encerrando as edições deste Abas Abertas recomendando alguns boletins por correio eletrônico que acompanho.

Minha quarta indicação é a Dentes Guardados, enviada mensalmente pelo escritor gaúcho Daniel Galera. A missiva traz reflexões sobre literatura, crônicas do cotidiano e discussões sobre assuntos correntes.

Abas Abertas

Por Marcelo Träsel

Rua Ramiro Barcelos, 2705 - Porto Alegre, Brasil

Não perca o que vem a seguir. Inscreva-se em Abas Abertas:
Weblog
Este e-mail chegou a você pelo Buttondown, a maneira mais fácil de lançar e expandir a sua newsletter.