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Junho 7, 2024

[Abas Abertas #12] Barro, caliça, petróleo e eucaliptos até onde a vista alcança

Em 5 de junho se comemorou o Dia Mundial do Meio Ambiente. Dois dias antes, a ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, afirmava na 1ª Conferência Internacional das Tecnologias das Energias Renováveis, realizada em Teresina, que as inundações de maio de 2024 no Rio Grande do Sul nada tiveram a ver com a atividade das petroleiras no Brasil. Aproveitou, ainda para defender a exploração do combustível fóssil na foz do rio Amazonas.

Porto Alegre não é por conta do petróleo, são causas diferentes. Pode ser por conta do que aconteceu na Europa, do que aconteceu nos Estados Unidos. Somos nós que sofremos mais – os países em desenvolvimento, os impactos daqueles que não cuidaram das suas florestas. Não é por conta do petróleo do Brasil.

Santos repete o discurso negacionista da extrema direita, dos generais filhotes da Ditadura Militar, como o infame Villas-Boas, e do ex-comunista, hoje neofascista, Aldo Rebelo sobre o Brasil ter direito a poluir a atmosfera em pleno século XXI porque as potências do Norte Global enriqueceram emitindo gases do efeito estufa desde a Revolução Industrial. É um discurso mentiroso e infantil.

O Brasil começou a explorar petróleo ainda no século XIX, na década de 1860, embora usando baixa tecnologia. Na década de 1930, Monteiro Lobato promovera a abertura da extração do combustível fóssil ao capital estrangeiro, escrevendo inclusive uma Carta a Getúlio, na qual criticava a posição nacionalista do governo em relação à commodity. O primeiro poço brasileiro foi descoberto na Bahia, em 1939, na localidade coincidentemente denominada Lobato. Ao longo dos anos 1940, houve disputa política em torno do monopólio estatal ou abertura ao capital estrangeiro, simbolizado pela campanha O petróleo é nosso!. Os nacionalistas prevaleceram e a Petrobras foi criada em 1953.

O Brasil participa ativamente da exploração intensiva do petróleo há pelo menos 70 anos. O setor responde, desde então, por entre 2% e 5% do PIB, com estimativas de atingir até 10% em anos recentes. Além disso, a mineração de carvão também é ativa no sul do país, apesar de ser menos expressiva para a economia, e a geração de energia termelétrica atingiu 20% do total em 2021, embora tenha retornado aos níveis do início do milênio em 2022. Portanto, é falso afirmar que apenas os países do Norte Global cresceram explorando combustíveis fósseis.

Evidentemente, Estados Unidos e Europa se beneficiaram mais da emissão de gases do efeito estufa, porque começaram mais cedo e usaram a energia gerada para mover sua indústria. A China entrou no jogo mais tarde, mas também soube aproveitar o período no qual a consciência sobre o desastre climático ainda não havia se estabelecido. Se o Brasil deixou de construir um parque industrial pujante nos últimos 70 anos, só pode culpar a si mesmo.

Ver a ministra das ciências negar a contribuição do país para o aquecimento global é ruim, mas a ver defender a continuidade da exploração da commodity com base no passado de outras nações é péssimo. É discurso de uma infantilidade digna de Bruno Aleixo na escola. O presente é grave e as medidas tomadas agora definirão o futuro de todo o planeta. A meta de aquecimento global de 1,5ºC já está perdida. As emissões “contratadas” para o futuro pelas políticas e projetos em andamento agora nos direcionam para um aquecimento acima de 2ºC. O desastre climático vai atingir a todos, direta ou indiretamente. Não há uma espécie de fila, na qual os países estejam alinhados conforme sua responsabilidade no problema para sofrer sanções.

“A única estratégia honesta para o momento é o corte radical e imediato no uso de combustíveis fósseis”, afirma uma revisão da literatura científica sobre a emergência climática fleumaticamente intitulada Terra em risco: um apelo urgente para encerrar a era da destruição e forjar um futuro justo e sustentável.

Se o “crescimento” é o único indicador relevante para os governos, cabe lembrar que o Brasil tem muito a perder com o desastre climático, pois o agronegócio representa cerca de um quarto do PIB. Conforme uma estimativa de pesquisadores da UFRGS, cerca de R$ 25 bilhões da agropecuária podem ter se perdido com as enchentes de maio no Rio Grande do Sul e o PIB do estado deve se estagnar até agosto, segundo pesquisadores da Unisinos.

Frente a esse tipo de posição por parte até mesmo de governos que supostamente acreditam na ciência, não admira os pesquisadores do clima estarem exaustos. Fica como tema de casa para a ministra e o resto do governo federal a leitura de um estudo divulgado no início de junho, que atribui o recorde de chuvas ao aquecimento global.

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Não se enganem! É impossível seguir vivendo nos padrões de consumo do século XX sem colocar em risco a existência humana, porque o capitalismo, pelo menos nos moldes da economia de mercado dominada por corporações, é incompatível com a manutenção do meio ambiente.

Passada a enchente, o momento é de se engajar em organizações focadas na manutenção das condições adequadas para a vida humana no planeta. Considero o tom da Extinction Rebellion adequado. A Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, fundada por José Lutzenberger nos anos 1970, tem um histórico de lutas e sucessos. Mais recentemente, a Arayara tem obtido vitórias importantes, tendo atuado fortemente contra o projeto da Mina Guaíba.

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No mesmo dia em que a titular do MCTI fazia seu discurso de dar orgulho à Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, o presidente Lula sancionava o fim da exigência de licenciamento ambiental para monoculturas de pinus ou eucalipto. Essa notícia, combinada com o anúncio de uma ampliação da fábrica de celulose da CMPC perto da capital gaúcha, é um mau agouro para o bioma pampa, o menos preservado do Brasil.

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As inundações carregaram consigo, além dos detritos costumeiros, muito lixo intelectual. Sempre aparece um imbecil propondo uma solução simplória para problemas complexos. Circulou um vídeo no qual um relincha sobre a abertura de um canal entre a lagoa dos Patos e o oceano, para escoar a água excessiva. Em seguida, Arthur Lira (PP) e Rui Costa (PT) saíram zurrando atrás, prometendo estudos a respeito do assunto. Em visita ao Rio Grande do Sul no dia 6 de junho, Lula repetiu a ideia.

O histórico de interferências em ciclos naturais para se atingir objetivos humanos é bastante ruim, como demonstra o exemplo do caramujo africano.

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Os petistas são viciados em tentar promover o desenvolvimento através de grandes projetos de infraestrutura e talvez aí esteja o motivo pelo qual ideias como abrir um canal ligando o Atlântico à lagoa dos Patos lhes pareça simpática. Se as enchentes demonstraram alguma coisa, no entanto, foi como a expansão de estruturas construídas pelo ser humano contribuem para esse tipo de desastre.

Uma carta publicada por pesquisadores do Instituto de Biociências da UFRGS demonstra preocupação quanto ao impacto ambiental dos projetos de reconstrução do estado, recomendando a restauração ambiental como a medida mais indicada. Um estudo do Movimento Pró-Matas Ciliares do Vale do Taquari, por exemplo, mostrou que as margens mais preservadas foram as menos atingidas.

A melhor forma de tornar os municípios atingidos pelas inundações mais seguros é, provavelmente, a desapropriação das áreas próximas dos rios e seu reflorestamento. O governo federal ou estadual poderia adquirir os terrenos destruídos pelas águas, pagando um valor melhor do que as famílias atingidas conseguiriam a preços de mercado hoje. A aquisição pela União e transformação em Área de Preservação Permanente seria ideal, pois dificultaria que vereadores ou deputados estaduais ligados ao agronegócio decidissem revender os imóveis para incorporação imobiliária daqui a alguns anos.

A restauração ambiental em lugar da reconstrução baseada em tijolos e concreto, além de ser provavelmente mais barata, também evitaria a exploração da vulnerabilidade dos atingidos pelo capitalismo de desastre.

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O fotógrafo sul-africano Gideon Mindel esteve no Rio Grande do Sul, capturando imagens para a série Submerged portraits. Em breve, a população gaúcha deve integrar a galeria.

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São Leopoldo, município cuja área urbana foi 60% devastada pelas cheias, foi o ponto inicial da colonização alemã no Brasil. Em pleno ano do bicentenário da imigração, o museu dedicado ao assunto também foi atingido.

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Aliás, o bicentenário da imigração alemã é uma boa oportunidade para ler o romance À mão esquerda, de Fausto Wolff, que merecia mais popularidade. O livro narra a história de Pérsio Traurig, nascido nos anos 1940 em uma colônia alemã do sul do país, a partir de pontos de vista do passado e do futuro. Ao mesmo tempo, o misterioso franco-atirador A Mão Esquerda de Deus dá cabo de membros odiosos da sociedade brasileira.

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Nas próximas edições de Abas Abertas, vou recomendar alguns boletins por correio eletrônico que acompanho.

Minha terceira indicação é a Li por aí, produzida pela jornalista especializada em ciência e tecnologia Jacqueline Lafloufa. Nas missivas, ela trata de cultura digital, produtividade, ghostwriting e da vida em geral.

    Abas Abertas

    Por Marcelo Träsel

    Rua Ramiro Barcelos, 2705 - Porto Alegre, Brasil

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