Abas Abertas

Inscrever-se
Arquivo
Maio 18, 2024

[Abas Abertas #11] A raiva sobrevém como enchente

Estou seguro.

Por sorte, ninguém da minha família imediata mora em algum lugar alagável por uma enchente de grau menor do que bíblico. Na pior das hipóteses, ficamos sujeitos a inconveniências que, em comparação com o ordálio de quem perdeu tudo - em alguns casos, pela segunda ou terceira vez em poucos anos - talvez nem mereçam ser descritas.

De fato, escrevo esta edição do boletim Abas Abertas em refúgio “gourmet” na bela praia de Garopaba, para onde vim com minha mãe e filha em busca de água potável e, em parte, também no intuito de aliviar a pressão sobre os recursos vitais para quem não tinha condições de deixar Porto Alegre, por estar trabalhando ou atuando diretamente nas operações de resgate.

O maior inconveniente pelo qual estou passando, no entanto, é psicológico. Professores ensinam a uma nova centena de estudantes todos os anos, o que é mais ou menos como ter milhares de filhos adotivos com cujos sucessos podemos nos alegrar. Quando há tragédias como a pandemia de covid-19 ou a enchente que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, todavia, essa larga rede de relacionamentos se manifesta como milhares de dramas particulares pelos quais chorar.

Por isso, gostaria de pedir a minhas leitoras e leitores que considerem doar para a ação de ajuda à comunidade da Fabico/UFRGS atingida pela enchente.

Não é necessário descrever o calvário das várias famílias de estudantes de que tomei conhecimento, pois ele é igual ao de tantas outras, num estado onde mais de 5% da população está desabrigada ou desalojada e 20% foi afetada diretamente de alguma maneira pelas águas. Indiretamente, não há uma pessoa sequer no Rio grande do Sul que não tenha sofrido de alguma forma com a inundação.

Num cenário como este, outra aflição é priorizar as doações. Quem precisa de mais dinheiro, com mais urgência? A família de uma aluna cuja residência desapareceu completamente sob as águas em Canoas, algumas das inúmeras cozinhas solidárias que pipocaram em clubes e escolas, ou as ONGs de defesa das crianças em situação vulnerável? Todas essas e muitas mais merecem e precisam de ajuda, mas mesmo o indivíduo de classe média mais generoso tem limitações.

A angústia quanto a quem ajudar primeiro poderia ser evitada com uma presença mais significativa do Estado. No entanto, graças aos tarados do Estado mínimo que atuam há décadas nas três esferas de governo, o poder público não estava preparado para intervir rápida e eficientemente. O governo federal vem se movendo nessas duas semanas, liberando parte do FGTS e prometendo pagamentos diretos para endereços atingidos, mas demora até entrar em velocidade de cruzeiro. Servidores públicos das áreas da saúde, segurança, transportes e infraestrutura vem trabalhando incansavelmente, mas décadas de precarização não podem ser revertidas em poucos dias.

A população experimenta tudo isso como uma ausência de Estado, que é preenchida na maior parte pela solidariedade civil, mas infelizmente também por muitos oportunistas e vigaristas. Em meio à incerteza, a desinformação prolifera, influenciadores digitais promovem todo tipo de trambique e políticos fisiológicos propõem soluções simplórias para problemas complexos. O resultado é ter de aguentar a maior parte dos meus parentes e alguns conhecidos compartilharem uma enxurrada de desinformação nas redes sociais.

E isso me enche de raiva. Uma raiva que só a muito custo não me arrasta como inundação.

Ver pessoas das quais eu gostava se afundarem em teorias da conspiração e politicagem rasteira durante a pandemia de covid-19 foi um processo muito penoso. Nunca imaginei ser obrigado a passar por isso de novo, tão cedo. Não esperava ter de me preocupar, após a defenestração de Bolsonaro, com amigos e ex-estudantes jornalistas sendo hostilizados durante coberturas. A desinformação une a ofensa à injúria nessa situação traumática.

Sinto vontades inconfessáveis em relação aos executivos e acionistas principais da Meta (Facebook, Instagram), Alphabet (Google, YouTube) e X (Twitter), que lucraram com a desinformação durante a pandemia e estão lucrando de novo agora, ao deixarem seus algoritmos explorarem o sofrimento dos gaúchos. Não fosse o lobby pesado desses parasitas, talvez hoje tivéssemos uma “lei das fake news” em vigor para proteger a sociedade e a saúde mental das pessoas sensatas.

Guilhotina é pouco, também, para o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, para o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, e para a ex-presidente Dilma Rousseff.

Boa parte da inundação em Porto Alegre poderia ter sido evitada com míseros R$ 60 mil em manutenção de casas de bombas. Muitas vidas poderiam ter sido salvas se algum sistema de alerta contra enchentes fora implementado nas cabeceiras dos rios pelo Piratini, mas o governo do Estado não apenas deixou de tomar essas medidas, como agiu para degradar o meio ambiente. Dilma, por sua vez, suprimiu o programa Brasil 2040, cujos resultados previam políticas para mitigar esse tipo de tragédia.

Assim como a maior parte dos políticos, esses três com certeza pensavam que as consequências do aquecimento global só apareceriam muito depois de seus mandatos terminarem. Leite e Melo, sobretudo, devem ter relaxado com a noção de que uma enchente próxima aos níveis de 1941, como a que atingiu o Estado em 2023, não se repetiria no ano seguinte. Daí, acharam melhor poupar R$ 60 mil e mutilar o Código Ambiental para agradar à torcida negacionista da extrema direita.

A raiva é um sentimento nefasto, mas aproveitável, se a pessoa tiver condições de transmutar sua alta energia em impulso para ações concretas em favor da sociedade. Só me resta, então, tentar surfar nesta raiva como Snake Plissken escapando de Los Angeles.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

Neste contexto de desinformação, recomendo acompanhar a cobertura jornalística e, principalmente, apoiar financeiramente os veículos abaixo, que não têm receio de “politizar a tragédia”:

Matinal

Sul 21

Brasil de Fato

Além disso, sigam o perfil do gerente de jornalismo do Correio do Povo, Jonathas Costa, no Twitter. O Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS também vem produzindo muita informação útil e acertou todas as previsões até o momento. A Agência Lupa criou uma página dedicada às checagens de fatos relacionadas à enchente no Rio Grande do Sul e jornalistas gaúchas criaram, com o mesmo fim, o perfil Verifica RS no Instagram.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

No dia 8 de maio, começou o Saga Dawa, uma espécie de quaresma budista, na qual se comemoram o nascimento, a iluminação e o parinirvana (morte) do Buda Shakyamuni. O ápice se dá no primeiro dia da lua cheia, o düchen, que marca a iluminação de Sidarta Gautama.

A tradição reza que neste período de 28 dias os méritos (e deméritos) de todas as ações são multiplicados milhares de vezes, o que pode ser um bom incentivo para realizar doações para as vítimas da enchente no Rio Grande do Sul.

  • Quando a Água Baixar - apoio a estudantes, servidores e funcionários terceirizados da Fabico/UFRGS: Vakinha

  • Casa de Cultura & Resistência: PIX casadeculturaeresistencia@gmail.com

  • Cozinhas Solidárias MTST (@cozinhassolidariasmtst): Apoia.se ou PIX enchentes@apoia.se

  • MST pelas vítimas da enchente: Apoia.se

  • Auxílio às famílias guarani atingidas pelas chuvas no RS: PIX 21860239000101

  • Apoio aos agricultores ecologistas cujas lavouras foram destruídas pela inundação: PIX 08588461000139

  • Somos Colo de Mãe - acolhimento de famílias atípicas: PIX somoscolodemae@gmail.com

  • Livraria Taverna, que fica no térreo da Casa de Cultura Mário Quintana e foi inundada: PIX livrariataverna@gmail.com

  • Júlia Dantas, escritora cuja casa foi alagada em Porto Alegre e que pode ser ajudada com compra de seus livros, como Ela se chama Rodolfo

  • Mandarinier, o meu restaurante mais querido em Porto Alegre, que fica na Cidade Baixa e pode ser apoiado se indo lá almoçar, de quebra aproveitando para desfrutar de excelente comida

  • Khadro Ling, o templo budista de Três Coroas, que tem promovido práticas em benefício de todos os seres mortos ou afetados pelas enchentes, além de contribuir de outras formas para a comunidade local, também atingida pelas águas

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

Se alguém se interessou pelo budismo ao ler esta edição de boletim e quiser saber mais a respeito, recomendo a leitura dos livros Portões da prática budista, de Chagdud Tulku Rinpoche - o fundador do templo de Três Coroas - ou O que (não) faz de você um budista, de Dzongsar Khyentse Rinpoche. Além disso, é claro, recomendo os ensinamentos e práticas na rede ligada ao Chagdud Gonpa.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

O clima pós-apolíptico que tomou conta de Porto Alegre me fez lembrar de O Deus das Avencas, do escritor gaúcho Daniel Galera, que explora futuros possíveis num mundo devastado pelo aquecimento global. Um dos melhores livros de ficção científica que já li. Dêem uma olhada também nas fotografias da enchente capturadas por Galera.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

Nas próximas edições de Abas Abertas, vou recomendar alguns boletins por correio eletrônico que acompanho.

Minha segunda recomendação é o Correio do Sul do Sul, enviado desde o pampa gaúcho pela professora de História Renata dal Sasso Freitas.

Abas Abertas

Por Marcelo Träsel

Rua Ramiro Barcelos, 2705 - Porto Alegre, Brasil

Não perca o que vem a seguir. Inscreva-se em Abas Abertas:
Weblog
Este e-mail chegou a você pelo Buttondown, a maneira mais fácil de lançar e expandir a sua newsletter.