Abas Abertas

Inscrever-se
Arquivo
Abril 16, 2024

[Abas Abertas #10] Doisladismo, a doença infantil do jornalismo

Como a gente rotula um programa que uma semana traz a historiadora Heloísa Starling para falar do golpe militar de 1964, que instaurou uma ditadura de 21 anos no país, e na semana seguinte entrevista ao vivo um senador da direita, filho de um ex-presidente que muitos apoiam e que outros execram?

Assim a apresentadora do Roda Viva encerrou o programa do dia 8 de abril, no qual a bancada entrevistou o senador Flávio Bolsonaro (não informarei o link).

Olha, Vera, eu rotulo como um programa que sofre da doença infantil do jornalismo, o doisladismo.

Não há equivalência possível entre as falas de uma pesquisadora há anos debruçada sobre um assunto e as posições de um político vigarista até mesmo para os padrões já bastante baixos de compromisso com a verdade em sua profissão. Sobretudo quando boa parte da comunicação deste político envolve propagar mentiras a respeito do tema abordado pela acadêmica na semana anterior. É até mesmo um desrespeito com a professora Starling.

Escrevi sobre falsas equivalências com um pouco mais de profundidade no artigo Guerras culturais, hacking e as vulnerabilidades do jornalismo à desinformação.

Os jornalistas na bancada se esforçaram bastante para emparedar Flávio Bolsonaro, mas, como todos os membros da família, ele mente como respira, então é impossível estabelecer qualquer tipo de diálogo. O formato do programa não ajuda, pois nenhum dos entrevistadores tem a chance de se aprofundar em um tema, devido ao rodízio. Além disso, é muito fácil para o entrevistado encerrar uma interação, basta virar a cadeira para outro lado.

O saldo foi o Roda Viva servir de palco para um político de extrema direita produzir cortes apresentando sua posição sobre os assuntos abordados pela bancada, os quais com certeza já estão circulando em redes sociais e grupos de WhatsApp. Flávio Bolsonaro contrariou até mesmo fatos que toda a população presenciou ao vivo, como os ataques de seu pai ao Supremo Tribunal Federal na Avenida Paulista, ou a tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023. Nenhum espectador terminou de assistir ao programa melhor informado.

Após a reação negativa nas redes sociais, Vera Magalhães respondeu no Instagram, chamando os críticos de estúpidos e ignorantes - normalmente, sinal de escolhas indefensáveis - e dobrando a aposta no doisladismo:

Estou no jornalismo político, diário, há exatos 31 anos. Nunca foi tabu para mim entrevistar políticos. Mas, entre tantos ruídos que as redes sociais criam e amplificam, passou a haver uma discussão bizantina sobre 'dar palco' para esse ou aquele, a partir da própria preferência ideológica. Então o Roda Viva, um programa de 39 anos, deveria pautar a escolha de convidados por critérios que variam de acordo com o viés do observador.

Flávio Bolsonaro não é um político de extrema direita antidemocrático a depender de preferências ideológicas, pois ele objetivamente está enredado em uma tentativa de evitar a posse de um presidente eleito. Apenas os apoiadores de seu pai questionam esses fatos a partir de observações enviesadas.

Uma equivalência válida para uma entrevista com qualquer bolsonarista seria convidar para o programa o representante de algum grupo da esquerda radical. No entanto, a última vez em que um líder do MST, por exemplo, participou deste programa supostamente livre de vieses, ao menos a julgar pelo material disponível no website do Roda Viva, foi ainda na época de Paulo Markun como apresentador. Líderes sindicais desapareceram há mais tempo. O convidado recente mais à esquerda deve ter sido Guilherme Boulos, mas somente após virar candidato à presidência, não por seu trabalho no MTST.

Em uma reportagem, com apuração, é possível evidenciar as contradições e falsidades nas posições de um político. Transmissões ao vivo, inevitavelmente, se tornam palco para os entrevistados, pois raramente os jornalistas deixam a diplomacia de lado e há menos tempo para julgar o valor de verdade das declarações. Talvez o Roda Viva e outros programas do gênero devessem pautar a escolha de convidados pelo critério mínimo de respeitarem a democracia e os direitos humanos, pois a vigência de ambos é condição para a sobrevivência do próprio jornalismo.

`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´

A Universidade Federal de Rio Grande (FURG) cassou os diplomas de doutor honoris causa concedidos durante a ditadura militar aos generais Médici, Golbery e ao almirante Maximiniano da Fonseca. O motivo foi a participação dos três em infrações aos direitos humanos durante o regime autoritário.

Espantosamente, a Câmara dos Diretores Lojistas local e uma tal Aliança Rio Grande emitiram notas criticando a decisão da universidade. Era uma atitude esperada por parte da própria Marinha e do Clube Militar, mas organizações representativas da indústria, comércio ou agropecuária não têm qualquer legitimidade para questionar uma instituição de ensino a respeito de seus critérios para conceder ou revogar títulos acadêmicos.

O caso é mais uma evidência de como o empresariado brasileiro foi contaminado pela ideologia e pela política durante os últimos anos. Também evidencia a influência que as Forças Armadas passaram a ter sobre a iniciativa privada. São as mesmas organizações que se arvoram "técnicas" e frequentemente condenam a "ideologização" das políticas públicas em governos de esquerda, ou mesmo quando algum governo de centro-direita resolve conceder algumas migalhas para os trabalhadores.

`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´

Depois de impedir seus ministros de rememorar as violações de direitos humanos perpetradas pela ditadura, em suposta "compensação" aos militares pelo veto a celebrações do golpe na caserna, o governo Lula agora decidiu apoiar um projeto de emenda à Constituição vinculando o orçamento das Forças Armadas à variação do PIB. Hoje, apenas as áreas de saúde e educação contam com a obrigatoriedade de ampliação do orçamento conforme o desempenho da economia.

É inacreditável a quantidade de mimos oferecidos aos militares por um presidente que por muito pouco não foi impedido de assumir o cargo, em uma tentativa de golpe de Estado protagonizada por essas mesmas Forças Armadas, em conluio com o incumbente. Difícil compreender quais resultados Lula espera desse romance, senão levar uma facada na primeira oportunidade em que virar as costas para seus novos amigos.

Enquanto isso, técnicos e professores da rede federal de ensino, trabalhadores de uma área supostamente fundamental nas políticas petistas, entram em greve para receber recomposição salarial, após anos de perdas para a inflação. Talvez os professores e outras categorias de servidores públicos do Executivo devessem quebrar Brasília inteira e tentar remover Lula do Planalto, para ver se um tratamento VIP como o que têm merecido os marajás reacionários das Forças Armadas.

`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´

A revista Piauí - me nego a escrever o nome com letra minúscula - publicou uma reportagem sobre o assédio judicial contra jornalistas no Brasil. A apuração se baseia em um relatório sobre o assunto que será lançado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo no dia 24 de abril, às 19h. Quem não estiver em São Paulo poderá acompanhar o evento pelo canal da Abraji no YouTube.

Na era de ouro dos blogs, participei de alguns debates sobre como o jornalismo investigativo poderia florescer, quando livre dos grilhões dos interesses econômicos e políticos da "grande mídia". Já na época, por volta do ano 2000, eu costumava alertar para o fato de que o jornalismo independente resiste apenas até perder o primeiro processo de indenização por danos morais. Um caso emblemático é o do Jornal Já, de Porto Alegre, levado à falência pela família do ex-governador Germano Rigotto (MDB).

Quando tive o privilégio de presidir a Abraji, entre 2020 e 2021, defini como uma das principais missões da minha gestão colocar o assédio judicial em pauta na esfera pública. O lawfare talvez seja, hoje, o maior empecilho à fiscalização do poder pelos jornalistas, sobretudo quando se está longe demais das capitais.

`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´

Semestre passado, voltei a coordenar o jornal laboratório digital do curso de Jornalismo da UFRGS. Quando entrei na universidade, em 2016, uma de minhas primeiras tarefas foi criar o Humanista, para substituir o impresso Três por Quatro. A proposta é semelhante à do falecido Editorial J, laboratório de jornalismo integrado de cuja criação participei, quando ainda trabalhava na Famecos/PUCRS: enquadrar todas as pautas sob o prisma dos direitos humanos.

É um prazer enorme retornar a uma redação, depois de sete anos dedicado somente a disciplinas tradicionais. Considero o melhor dos mundos para um jornalista atuar em publicações universitárias, porque os salários são melhores e há liberdade de atuação. Além disso, as reportagens produzidas pelos estudantes devem muito pouco ao que sai das redações profissionais e, o que lhes falta em experiência, compensam com entusiasmo.

Nesta semana, a turma 2024/1 começou a publicar. Acompanhem em ufrgs.br/humanista.

`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´

A física alemã Sabine Hossenfelder, autora de A ciência tem todas as respostas?, publicou um vídeo no YouTube relatando sua experiência com o machismo e a exploração do trabalho na academia. Cansada de ser relegada em favor de colegas homens nas contratações, de prejudicar a saúde rodando o mundo em busca de bolsas e de ver propostas relevantes perderem financiamento para pesquisas da moda, a doutora Hossenfelder finalmente decidiu abrir mão de seu sonho e se tornar divulgadora científica.

Seu relato é forte e alinhado com as experiências de pesquisadoras e pesquisadores europeus ou estadunidenses com quem já conversei sobre carreira. O sistema acadêmico brasileiro, muito concentrado nas universidades federais, tem diferenças importantes e, talvez, seja um pouco mais aberto, pois as contratações são realizadas via concurso público. Todavia, não está longe de se tornar o esquema de pirâmide glorificado que a doutora Hossenfelder descreve.

`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´

Há tempos não descobria um artista musical que me agradasse, mas recentemente o algoritmo me recomendou I Walk the Line, da banda punk-gótica britânica Alien Sex Fiend, formada em 1982. Passei a ouvir a discografia e lamento não ter descoberto o grupo há 30 anos.

`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´

O donburi de ovas de salmão servido pelo izakaya Quito Quito foi um dos melhores pratos que comi quando viajei a São Paulo em março. Outros destaques foram o niguiri de atum maturado, o porco grelhado com missô e o curry bem apimentado. O estabelecimento é informal e vale chegar cedo, com bastante gente, para poder pedir de tudo.

`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´`´

Nas próximas edições de Abas Abertas, vou recomendar alguns boletins por correio eletrônico que acompanho.

Se ainda não assinam, recomendo, para começar, Não prometo absolutamente nada, escrito pela jornalista Joëlle-Marie Declercq. Ela vem acompanhando há anos as subculturas da internet brasileira, com reportagens, por exemplo, sobre a ideologia red pill. Também produziu o podcast Brasil para maiores, focado na indústria pornográfica nacional.

Abas Abertas

Por Marcelo Träsel

Rua Ramiro Barcelos, 2705 - Porto Alegre, Brasil

Não perca o que vem a seguir. Inscreva-se em Abas Abertas:
Weblog
Este e-mail chegou a você pelo Buttondown, a maneira mais fácil de lançar e expandir a sua newsletter.