[Abas Abertas #1] Dos tempos da internet a lenha
No dia 5 de outubro, o fanzine por correio eletrônico CardosOnline teria completado 25 anos de existência, se não houvesse perecido no dia 11 de setembro de 2001. O boletim foi criado em 1998, quando André Czarnobai, cujo apelido de faculdade era Cardoso, se viu entediado pela greve dos professores e resolveu aproveitar a nova tecnologia das missivas digitais para enviar aos colegas extensas arengas a respeito da vida, do universo e de tudo o mais. Alguns dos destinatários começaram a responder com suas próprias catilinárias autocentradas, uma coisa levou à outra e o Cardoso acabou convidando Clarah Averbuck, Daniel Galera, Daniel Pellizzari, Guilherme Caon, Guilherme Pilla, Hermano Freitas e o autor destas mal traçadas para compor a equipe fixa de colunistas.
Os COLunistas passaram os primeiros anos redigindo COLunas diárias de cerca de 8 mil caracteres, ou duas páginas de Word. Como era a época da Internet a lenha, quando a palavra "conteúdo" ainda não era usada para se referir a produtos culturais e havia escassez do mesmo em português, o COL ganhou assinantes rápido. No fim, eram cerca de 10 mil cadastrados para receber as edições, que deixaram de ser diárias em algum ponto do ano 2000, porque encontramos estágios ou empregos. Um sucesso inédito para aquele período. Recebemos atenção da mídia e de agitadores culturais no Brasil inteiro, mas ninguém ganhou dinheiro, porque ainda eram os tempos da Internet arte, da Internet malandra.
O COL se tornou um projeto multimídia quando resolvemos marcar um orkontro avant la lettre com os leitores no bar Garagem Hermética. As festas foram denominadas Bailão do Velho CardosOnline, em referência a um estabelecimento para a terceira idade famoso na capital gaúcha. Os frequentadores recebiam edições do CardosOnPaper, fanzine em papel com a nossa seleção de melhores textos. Promovemos a primeira apresentação de Tony da Gatôrra na cidade, quase enviamos uma menina para o cemitério quando uma caixa de som se desprendeu da parede e atingiu sua cabeça (ela tomou pontos e voltou para a festa) e eu mesmo destruí um abacaxi no palco aos gritos de "ananaaaaaás!", sujando todas as pessoas da primeira fila. Esse tipo de peripécia nos garantiu a honra de fechar o Garagem no Bailão do Apocalipse, após o bar ser vendido para outro proprietário pelos fundadores Leo Felipe e Ricardo Kudla.
Éramos impelidos pelo clima geral de anarquismo que dominava a rede sob a trilha sonora dos modems se conectando às linhas telefônicas após a meia noite para baixar discos usando o Napster. Nosso modelo de jornalista era Hunter Thompson. Por um bom tempo, assinei minha coluna como Dr. Z@pata, em homenagem ao Subcomandante Marcos. As zonas autônomas temporárias de Hakim Bey influenciaram a todos nós. Quando vimos os aviões atingindo as Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, percebemos que era o momento perfeito de encerrar aquele ciclo num ato final de terrorismo poético. Inventamos a Internet no Brasil. Foi trimassa.
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O leitor mais atento talvez esteja pensando que este boletim é resultado da nostalgia pelo ano de 1999. O leitor além de atento também inclemente talvez esteja atribuindo a criação deste boletim a uma crise de meia idade. Talvez ambos estejam certos. Participar do COL foi um privilégio enorme e por vezes sinto que fiz a coisa mais importante da minha vida muito cedo.
Ao mesmo tempo, a Internet em geral se degradou nos últimos anos e perdi a vontade de me expressar nas redes sociais. Costumava usar bastante o Twitter, mas Elon Musk fez o favor de comprar a empresa e tomar atitudes como remover detalhes dos cartões de links, para tornar o uso do serviço inviável e nos salvar a todos do vício. O algoritmo do Instagram hoje em dia só distribui vídeos de gente burra que não sigo e anúncios promovendo estelionatos. Não vou usar TikTok porque não sou analfabeto. No Blue Sky, Mastodon e outras alternativas, só se ouve o chirriar dos grilos.
A nostalgia provocada pelo quarto de século do CardosOnline me lembrou do quanto era gratificante me expressar por correio eletrônico. Assim, aqui estamos. A proposta do Abas Abertas é ser um boletim sem periodicidade ou formato definidos, trazendo coisas que adorei, ou que odiei, numa gama variada de assuntos. Às vezes, longas perorações, noutras, breves comentários. Em geral, tudo misturado, no melhor estilo da virada do milênio.
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O ex-governador do Rio Grande do Sul e primeiro prefeito do PT em Porto Alegre, Olívio Dutra, declama o poema Tapera, de Aparício Silva Rillo, no clássico bar Tuim.
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Após literalmente anos de avisos por parte de pesquisadores e ativistas que monitoram a extrema direita, o PDT finalmente expulsou militantes da Nova Resistência, dois dias após o grupo ser classificado como neofascista e pró-Rússia pelos EUA. É difícil resistir a vincular o entrismo da NR com a filiação de Aldo Rebelo ao PDT em 2022, uma vez que o ex-comunista adotou a ideologia duguinista - inclusive, publicou um livro chamado O Quinto Movimento, título muito semelhante ao da obra mais famosa de Dugin, Quarta Teoria Política. A NR estava se infiltrando no partido desde 2018 e aparentemente procurava se aproximar de outros setores da esquerda, a julgar pelo espaço que veículos como Brasil 247 e Opera Mundi vinham concedendo a um de seus líderes, Raphael Machado.
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Não é um lançamento, mas nesta primeira edição do Abas Abertas gostaria de recomendar um livro que ficou comigo desde que o li em 2021. O Deus das Avencas, de Daniel Galera, apresenta uma visão instigante do futuro após o desastre climático. Ele não se fixa no sofrimento pelo qual os seres humanos vão passar e nem recai no fatalismo, porque oferece uma solução possível para a sobrevivência se tornar, de fato, vida. Embora seja anunciado como um volume reunindo três novelas, terminei a leitura com a sensação de estar diante de um romance.
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A minissérie Missa da Meia Noite é muito melhor do que me pareceu à primeira vista. Como quase todas as séries, poderia ser um filme, é claro, mas pelo menos há um desenvolvimento incremental dos personagens, encarnados por bons atores. Consegue trazer algumas surpresas dentro de um gênero batido, que não vou revelar porque entregaria detalhes importantes da trama.
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Não sou um grande fã de pastéis de Belém, mas os da padaria São Francisco são excelentes. Eles talvez produzam também os melhores croissants de Porto Alegre e as empanadas de carne são ótimas. Curiosamente, o pão em si não é grande coisa. Recomendo comprar os doces e salgados na São Francisco, depois passar na Domenica e levar o pão homônimo, ou o rústico integral.
Os COLunistas passaram os primeiros anos redigindo COLunas diárias de cerca de 8 mil caracteres, ou duas páginas de Word. Como era a época da Internet a lenha, quando a palavra "conteúdo" ainda não era usada para se referir a produtos culturais e havia escassez do mesmo em português, o COL ganhou assinantes rápido. No fim, eram cerca de 10 mil cadastrados para receber as edições, que deixaram de ser diárias em algum ponto do ano 2000, porque encontramos estágios ou empregos. Um sucesso inédito para aquele período. Recebemos atenção da mídia e de agitadores culturais no Brasil inteiro, mas ninguém ganhou dinheiro, porque ainda eram os tempos da Internet arte, da Internet malandra.
O COL se tornou um projeto multimídia quando resolvemos marcar um orkontro avant la lettre com os leitores no bar Garagem Hermética. As festas foram denominadas Bailão do Velho CardosOnline, em referência a um estabelecimento para a terceira idade famoso na capital gaúcha. Os frequentadores recebiam edições do CardosOnPaper, fanzine em papel com a nossa seleção de melhores textos. Promovemos a primeira apresentação de Tony da Gatôrra na cidade, quase enviamos uma menina para o cemitério quando uma caixa de som se desprendeu da parede e atingiu sua cabeça (ela tomou pontos e voltou para a festa) e eu mesmo destruí um abacaxi no palco aos gritos de "ananaaaaaás!", sujando todas as pessoas da primeira fila. Esse tipo de peripécia nos garantiu a honra de fechar o Garagem no Bailão do Apocalipse, após o bar ser vendido para outro proprietário pelos fundadores Leo Felipe e Ricardo Kudla.
Éramos impelidos pelo clima geral de anarquismo que dominava a rede sob a trilha sonora dos modems se conectando às linhas telefônicas após a meia noite para baixar discos usando o Napster. Nosso modelo de jornalista era Hunter Thompson. Por um bom tempo, assinei minha coluna como Dr. Z@pata, em homenagem ao Subcomandante Marcos. As zonas autônomas temporárias de Hakim Bey influenciaram a todos nós. Quando vimos os aviões atingindo as Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, percebemos que era o momento perfeito de encerrar aquele ciclo num ato final de terrorismo poético. Inventamos a Internet no Brasil. Foi trimassa.
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O leitor mais atento talvez esteja pensando que este boletim é resultado da nostalgia pelo ano de 1999. O leitor além de atento também inclemente talvez esteja atribuindo a criação deste boletim a uma crise de meia idade. Talvez ambos estejam certos. Participar do COL foi um privilégio enorme e por vezes sinto que fiz a coisa mais importante da minha vida muito cedo.
Ao mesmo tempo, a Internet em geral se degradou nos últimos anos e perdi a vontade de me expressar nas redes sociais. Costumava usar bastante o Twitter, mas Elon Musk fez o favor de comprar a empresa e tomar atitudes como remover detalhes dos cartões de links, para tornar o uso do serviço inviável e nos salvar a todos do vício. O algoritmo do Instagram hoje em dia só distribui vídeos de gente burra que não sigo e anúncios promovendo estelionatos. Não vou usar TikTok porque não sou analfabeto. No Blue Sky, Mastodon e outras alternativas, só se ouve o chirriar dos grilos.
A nostalgia provocada pelo quarto de século do CardosOnline me lembrou do quanto era gratificante me expressar por correio eletrônico. Assim, aqui estamos. A proposta do Abas Abertas é ser um boletim sem periodicidade ou formato definidos, trazendo coisas que adorei, ou que odiei, numa gama variada de assuntos. Às vezes, longas perorações, noutras, breves comentários. Em geral, tudo misturado, no melhor estilo da virada do milênio.
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O ex-governador do Rio Grande do Sul e primeiro prefeito do PT em Porto Alegre, Olívio Dutra, declama o poema Tapera, de Aparício Silva Rillo, no clássico bar Tuim.
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Após literalmente anos de avisos por parte de pesquisadores e ativistas que monitoram a extrema direita, o PDT finalmente expulsou militantes da Nova Resistência, dois dias após o grupo ser classificado como neofascista e pró-Rússia pelos EUA. É difícil resistir a vincular o entrismo da NR com a filiação de Aldo Rebelo ao PDT em 2022, uma vez que o ex-comunista adotou a ideologia duguinista - inclusive, publicou um livro chamado O Quinto Movimento, título muito semelhante ao da obra mais famosa de Dugin, Quarta Teoria Política. A NR estava se infiltrando no partido desde 2018 e aparentemente procurava se aproximar de outros setores da esquerda, a julgar pelo espaço que veículos como Brasil 247 e Opera Mundi vinham concedendo a um de seus líderes, Raphael Machado.
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Não é um lançamento, mas nesta primeira edição do Abas Abertas gostaria de recomendar um livro que ficou comigo desde que o li em 2021. O Deus das Avencas, de Daniel Galera, apresenta uma visão instigante do futuro após o desastre climático. Ele não se fixa no sofrimento pelo qual os seres humanos vão passar e nem recai no fatalismo, porque oferece uma solução possível para a sobrevivência se tornar, de fato, vida. Embora seja anunciado como um volume reunindo três novelas, terminei a leitura com a sensação de estar diante de um romance.
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A minissérie Missa da Meia Noite é muito melhor do que me pareceu à primeira vista. Como quase todas as séries, poderia ser um filme, é claro, mas pelo menos há um desenvolvimento incremental dos personagens, encarnados por bons atores. Consegue trazer algumas surpresas dentro de um gênero batido, que não vou revelar porque entregaria detalhes importantes da trama.
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Não sou um grande fã de pastéis de Belém, mas os da padaria São Francisco são excelentes. Eles talvez produzam também os melhores croissants de Porto Alegre e as empanadas de carne são ótimas. Curiosamente, o pão em si não é grande coisa. Recomendo comprar os doces e salgados na São Francisco, depois passar na Domenica e levar o pão homônimo, ou o rústico integral.
Por Marcelo Träsel
Rua Ramiro Barcelos, 2705 - Porto Alegre, Brasil
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