Nem sempre é divertido brincar de Médico
Se você sonhou em ser um médico quando era criança, chances altas de que foi culpa de uma série de TV.
Você talvez tenha lido o título deste e-mail e pensado: peraí, essa profissão existe, ela não é imaginária! Sim, sua lógica faz sentido, mas vou pedir licença para falar sobre todos os aspectos imaginários dessa profissão, especificamente na TV.
Médico geralmente é uma das primeiras profissões que as crianças se imaginam exercendo no futuro. Talvez porque seja literalmente o primeiro contato com uma profissão que quase todos nós temos no mundo moderno. Podemos não ter memória disso, mas, assim que nascemos, os primeiros profissionais com quem interagimos são da área da saúde, e o primeiro espaço de trabalho que frequentamos com certa regularidade são os hospitais. É nesses ambientes que temos nosso primeiro vislumbre do mundo profissional, mas não é necessariamente deles que tiramos a visão que acaba permeando boa parte da nossa vida sobre quem são esses trabalhadores da saúde.
Por 15 temporadas, E.R. (ou Plantão Médico, no Brasil) foi a principal série sobre médicos no ar, tanto na televisão americana quanto no resto do mundo. Grey's Anatomy certamente tomou o lugar de E.R. há mais de uma década e não parece que vai perder o pódio tão cedo. Ainda assim, como esta newsletter tem um ponto de vista de millennial geriátrico, E.R. permanece no meu topo como o primeiro contato com a idealização dos médicos fornecida pela ficção.
Não por acaso, The Pitt, série do Max que estreou duas semanas atrás, é a continuação espiritual de E.R. que eu não sabia que queria. Em vez de Chicago, estamos em Pittsburgh, e em vez de Noah Wyle interpretando um jovem residente novato, temos Noah Wyle interpretando o chefe de uma unidade de emergência cheia de profissionais recém-saídos da faculdade.
A premissa de The Pitt (que, inclusive, foi processada pela família de Michael Crichton, criador de E.R.) é familiar e atualiza os tropes do "médico herói" da ficção. Dessa vez, no mundo pós-pandemia, o personagem Michael "Robby" Rabinavitch, vivido por Wyle, não carrega traumas de um campo de batalha distante (como o Carter em E.R.). Ele agora vive intensamente na mesma zona de guerra em que se tornaram todos os hospitais entre 2020 e 2021. Seu trauma é mascarado por uma rotina, digamos, insalubre, que alimenta o mito do profissional dedicado que a TV precisa que ele seja.
Em um dado episódio, o Dr. Robby se martiriza indo de atendimento em atendimento sem conseguir fazer uma merecida pausa para o banheiro. Seu sacrifício é inspirador para o resto da equipe, com quem ele lida com bastante empatia e cuidado. Robby, como um bom médico da ficção, não se limita a atender pacientes em menos de dois minutos sem nem olhá-los nos olhos; ele é 100% dedicado a todos, garantindo que compreendam suas explicações e, na tradição de muitos dramas médicos da TV, vai além do seu trabalho no hospital, ajudando a resolver uma série de conflitos pessoais que chegam pelas portas da emergência.
Faz sentido que, na TV, precisemos que nossos médicos não passem o dia receitando prednisona para pessoas com dor de garganta. Precisamos que eles lidem com casos complicados e dilemas éticos em todos os episódios, o que transforma o médico ficcional em uma espécie de super-herói sem capa, que se coloca constantemente na linha de fogo para salvar cada um de seus pacientes. As implicações no mundo real são claras: a medicina, que é uma profissão para a qual pouquíssimas pessoas têm real vocação, é uma das carreiras mais procuradas em todas as universidades do mundo. O profissional de saúde, cuja rotina é muitas vezes tediosa e massacrante, é amparado pela mágica da ficção, que transforma a rotina de um hospital em um drama emocionante e, muitas vezes, romântico. Não no sentido carnal, mas no literário. E digo literário do século 19.
O personagem médico é uma figura complexa que, quando introduzido como inseguro ou arrogante, precisa trilhar uma jornada de sacrifício que vai muito além de qualquer rotina real da profissão. O próprio Carter, de E.R., foi recompensado ao se tornar mentor de novos médicos na última temporada. Agora, ele “retorna” com essa bagagem simbólica para interpretar um chefe daqueles que só existem na ficção, um tipo que se anula em prol, literalmente, da salvação de vidas.
Poucos de nós têm a sorte de nunca terem querido ser médicos em algum momento. Resistir a essa propaganda, caso você não tenha a mínima vocação, não é fácil. E, se depender da TV, nunca vai ser.
The Pìtt está disponível na Max.
Trabalho de Casa:
No Gizmodo, um artigo sobre como não é fácil fazer animação para adultos em qualquer lugar que não seja o Japão (e nem lá, esses tempos). Prometo que falo sobre Castlevania Nocturne no futuro;
Na New Yorker, um texto do Joshua Rothman sobre como estamos cercados de sistemas que quebram o tempo inteiro, mas precisam ser reparados durante a jornada;
Na The Atlantic, um artigo do Gal Beckerman sobre Werner Herzog, que ainda é um dos meus documentaristas favoritos (gosto mais dos docs dele do que da ficção) e é uma figura única no cinema. Não muito diferente de David Lynch, que nos deixou;
Uma ótima entrevista na newsletter da Anne Helen sobre como nos apegamos ao orçamento doméstico da mesma maneira que as pessoas se apegam a dietas – e como isso talvez não seja tão saudável quanto imaginamos; e
Esta semana estreia o primeiro telefilme de Star Trek, e tô muito curioso para saber o que me aguarda em Section 31. Ótimo texto da Polygon.
Até a próxima quinzena e obrigado!