O poder do Super-Herói é ter uma vida dupla
Sem identidades secretas, os super-heróis se tornaram a glorificação do trabalho, onde a profissão se funde à própria identidade de quem a exerce.
Em 1978, quando um dos primeiros (ou, discutivelmente, o primeiro) filmes de super-herói chegou aos cinemas, prometendo que o público acreditaria que um homem era capaz de voar, a cena que estabelece o Superman como um ser extraordinário ainda me arrepia. Tudo começa quando a repórter Lois Lane, no topo do jornal Planeta Diário, corre para um helicóptero estacionado no heliponto do edifício.
Sempre ouvi dizer que os jornais tinham muito mais poder e dinheiro antes da internet, mas ter seu próprio helicóptero e usá-lo para se deslocar entre entrevistas certamente não é algo que alguém faz hoje em dia na... sei lá, Folha de S. Paulo ou mesmo no The New York Times. Mas, em 1978, isso não parecia algo de outro mundo. Digressão à parte, quando Lois está prestes a decolar, uma tragédia acontece: o piloto perde o controle da aeronave, que fica presa em cabos de aço. A multidão nas ruas percebe a cena de terror no alto do arranha-céu e reage horrorizada ao ver Lois pendurada do lado de fora do helicóptero, prestes a despencar no meio de uma rua lotada de Metrópolis.
Paralelamente à ação, vemos Clark Kent, repórter recém-chegado, que, no caminho de casa, ouve a confusão e decide agir. Ele corre pelas ruas em busca de uma cabine telefônica fechada, mas, já naquela época, não encontra nenhuma. Pensando rápido, recorre à porta giratória de um prédio próximo e, pela mágica do cinema, se transforma ali mesmo no Superman, voando em direção a Lois, que agora caía prédio abaixo. Eu amo demais a troca de frases entre os dois quando ele a resgata no ar:
— Eu te peguei.
— Você me pegou? — ela questiona, incrédula. — Mas quem pegou VOCÊ?
A primeira coisa que a repórter quer saber é: quem ele é?
Até aquele momento, no mundo dela, humanos não voavam e muito menos conseguiam segurar helicópteros em queda com um só braço. Depois daquela noite, o mundo dentro e fora do filme mudaria para sempre. Sim, pessoas eram capazes de voar, mas era preciso entender quem elas realmente eram por trás da capa e do uniforme.
E é isso que estabelece a dinâmica entre o Superman e sua verdadeira identidade, Clark Kent. A extensão dessa ideia, para mim, é melhor resumida pela frase do próprio personagem anos depois, na série As Novas Aventuras do Superman, quando Lois se revolta ao descobrir que Clark e Superman são a mesma pessoa. Sua defesa é simples:
— Superman é o que eu posso fazer, mas Clark Kent é quem eu sou.
Essa separação entre trabalho e vida pessoal era uma das essências dos super-heróis até então.
Em 2025, isso não é mais verdade. Não a parte sobre superpoderes no cinema — eles estão por toda parte —, mas a ideia de que a identidade do super-herói é secreta e separada da função. Agora, nome e sobrenome acompanham também a persona heroica, e isso talvez seja uma das maiores, com o perdão da piada, kryptonitas do gênero hoje em dia.

A primeira cena de Capitão América: Admirável Mundo Novo mostra Sam Wilson, interpretado por Anthony Mackie, pegando cervejas em um bar comum em Washington. Na televisão do bar, ele próprio aparece em seu traje de Capitão América. Todos sabem quem ele é e o que faz e, ainda assim, ninguém se aproxima como fã ou crítico. Ele é apenas um cidadão exercendo um trabalho, aparentemente.
O filme, que se propõe a ser um thriller político, falha em provocar tensão e em abordar qualquer política de modo direto. O Capitão América, que nunca teve uma identidade secreta no Universo Marvel, age como um funcionário do governo, executando missões com o exército e seguindo ordens de um presidente notoriamente questionável. Em parte, o que enfraquece a narrativa é o fato de que a identidade de Sam não tem peso real na trama. Em O Falcão e o Soldado Invernal, conhecemos um pouco de seu passado e de sua família, mas, no novo filme, esses elementos são irrelevantes.
Ainda que seu nome fosse conhecido pelo mundo desde o início, Steve Rogers, o primeiro e mais icônico Capitão América, foi apresentado desde sua infância humilde, com todas as desvantagens de um corpo frágil. Conhecemos seu melhor amigo, sua vizinhança, sua motivação para entrar no exército, seu primeiro amor e sua propensão ao auto-sacrifício. Ele literalmente se joga sobre o que acredita ser uma bomba para salvar os colegas antes mesmo de ter poderes. Ou seja, ele é alguém antes de assumir o cargo de ser um super-alguém.
Sam, infelizmente, não tem esse mesmo desenvolvimento. Quando o conhecemos, ele já é um ex-militar e rapidamente se torna um dos Vingadores. O fato dele não ser branco é um elemento que, no filme, é abordado nas entrelinhas, todas as vezes em que Sam divide a cena com Carl Lumbly, que interpreta um super-soldado anterior, abandonado e aprisionado pelo governo. Juntos, os dois poderiam ter contado uma história de oposição a um Estado opressor, mas nada disso acontece. Existem argumentos sobre colocar expectativas demais em um super-herói negro e claro, eles são complexos e não acho que estou apto a discutir mais fundo.
Mas sim, por um lado, sabemos que a Disney/Marvel não quer incomodar (?) uma parte problemática do seu público — a parte que não lembra mais o que a função do Capitão América já significou para os próprios estadunidenses nos quadrinhos (vide painel abaixo).

Por outro, fica claro que a empresa deixou de lado um dos aspectos fundamentais da profissão do super-herói: a identidade secreta não é apenas um disfarce, mas um elemento essencial que norteia o drama da história e a ética do personagem.
Sim, se o novo filme tentasse emular alguma complexidade política, ele seria mais interessante. Mas não é possível fazer isso sem endereçar e destrinchar quem são os personagens e o que eles querem além do trabalho. Política não é um campo que existe no vácuo; ela deriva de e reverbera somente entre seres humanos.
O super-herói é uma profissão inerentemente sacrificante, e esse sacrifício frequentemente se reflete no dilema entre a função e a pessoa. Se Sam Wilson é apenas o Capitão América, então ele não está sacrificando nada — apenas proferindo frases de efeito sobre reconhecermos nossas diferenças.
Capitão América: Admirável Mundo Novo está em exibição nos cinemas.
*A exceção: Peter Parker precisou de magia para voltar a ser um homem comum no último filme da trilogia mais recente. Não é a toa que ele é um dos mais populares e eficazes personagens da Marvel.
Trabalho de Casa
Um excelente post de Annalee Newitz sobre Stuart Hall e a importância de analisarmos a cultura não apenas pela perspectiva de quem a produz, mas também de como é recebida e reinterpretada.
Um bom texto do Cal Newport sobre como Michael Crichton colocava a ciência no centro moral de seus livros.
Um artigo do The New York Times sobre como nosso jeito de ver TV está mudando.
Uma reflexão do Aftermath sobre a obsessão de James Gunn (que dirige o novo filme do Superman) com o anti-carismático Esquadrão Suicida.
Até a próxima quinzena e obrigado!