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Março 20, 2025

Um pouco sobre Ihatovo Monogatari e Kenji Miyazawa

Prosa para corações simples

Capa de Ihatovo Monogatari para o Super Famicom
Ihatovo Monogatari (1993)

Sou bem particular com o que é precioso pra mim. Seja com presentes que recebi, com as pequenas quinquilharias da minha vida espalhadas pela casa, com aquele filme e aquele álbum que me marcaram. Tudo tem o seu lugar e o seu tempo. Não gosto de ouvir uma canção quando não é lá o melhor momento para se ouvir ela, nem gosto de usar uma xícara diferente na hora de tomar o meu café da tarde. Pode ser algo bobo, mas preciso dos meus rituaizinhos! Não posso tratar o precioso como banal, sabe? A vida já é cheia de coisas banais.

Falo isso pois meio que levei meses pra terminar esse joguinho aqui. Semanas e semanas, de capítulo em capítulo. Curtinho, com pouco mais de duas horas de duração, mas levei esse tempo todo porque ele é precioso pra mim. Não podia jogar ele mal-humorada, cansada, envenenada. Pode parecer bobagem mas falo isso do fundo do meu coração! Porque meu coração precisava estar no lugar certo.

Ihatovo Monogatari é doce, com uma sensibilidade bem única. É o resultado de genuína paixão dos seus poucos desenvolvedores pelas singelas obras de Kenji Miyazawa, um notório autor infantil japonês. Obras que por sua vez, também estão envoltas de uma sensibilidade bem difícil de descrever. É feito de um amor que transborda em cada pequeno verso da trilha sonora desse joguinho, cada lindinho sprite e em cada parágrafo do seu texto.

Acaba sendo meio que impossível separar Ihatovo Monogatari do próprio Kenji Miyazawa. Desenvolvido e publicado pela Hector em 1993, é um jogo que tenta ser mais que apenas uma versão jogável das histórias de Kenji. É uma tentativa de imergir o jogador na sua filosofia, na sua visão de mundo utópica e humanista. Na sua compaixão pelo pequeno, pelo oprimido e pelo diferente. Na sua busca pela justiça social e pela preservação do mundo natural.

Uma fotografia em preta e branco do Kenji Miyazawa em um campo aberto.
Jovem Kenji em em campo de arroz.

É uma tentativa que teve pelo menos um caso de sucesso! Ihatovo Monogatari consegue criar uma mística tão tentadora ao redor do Kenji que foi impossível pra mim não ficar ao menos um pouquinho curiosa a respeito de sua pessoa e de suas obras. E eu acabei indo atrás!

A prosa do Kenji gerou um certo fascínio em mim. Existe uma coisinha nela de misturar o surreal com o mundano que acho fascinante. Isso é algo até que um tanto que comum em arte japonesa, e como um pequeno exemplo você pode até ver alguns paralelos com a maneira que o fantástico é apresentado nos filmes do Estúdio Ghibli. Mas acho que o Kenji agarra o surreal de uma maneira bem mais apaixonada! Ele era alguém que realmente amava brincar com a imaginação. Seja com postes de sinalização apaixonados, elefantes com consciência de classe e longas viagens de trem pelo cosmos, sua escrita raramente fica presa ao material. Porém, ainda existe aquele pé na nossa vida cotidiana, sabe? Nos nossos sentimentos mais humanos.

Uma historinha dele que me pegou muito foi a do “Falcão Noturno”. Ela conta a jornada de um pequeno bacurau. Desesperado pra não perder a sua identidade, foge até os céus suplicando as estrelas da noite por ajuda. É uma história sobre a dor do marginalizado. A dor do pequeno. Acho que o medo de perder um nome dado pelo divino é uma coisa que bate meio forte quando o seu nome é uma das coisas mais preciosas que você tem. Uma das únicas coisas que você tem. “Falcão Noturno” se tornou uma das minhas coisas favoritas de todos os tempos, e vou carregar pra sempre dentro do meu peito.

Um desenho feito por mim representando o final da história do "Falão Norturno", mostrando o pequeno bacurau caindo em direção as estrelas.
Um rabisquinho feito por mim. Realmente amo a historinha desse bacurau.

Eventualmente eu entendi o amor que o time da Hector tinha pelas histórias do Kenji, e Ihatovo Monogatari acaba sendo uma experiência um pouco diferente dentro desse contexto. Ele perde um pouco do mistério, sabe? Só um pouco. Mas ganha algo bem especial com esse senso de familiaridade. Um estranho sentimento de nostalgia. Aquele tipo de nostalgia a qual nem te pertence. Uma melancolia pelas memórias de um mundo mais simples, com corações mais simples. Um mundo que talvez nem tenha existido, no final das contas.

É engraçado voltar ao jogo e perceber que agora você conhece um pouco mais da malandragem do sapão dono de bar que ama embriagar seu pelotão de pequenas rãs! Ou o motivo pelo qual o gatinho que mora em um fogão abandonado ser tão maltratado pelos seus colegas de trabalho. Que agora você conhece um pouco mais sobre o espírito indomável de Budori Gusuko. A cidade de Ihatovo se torna um segundo lar. Não apenas para o jogador, mas também para o misterioso viajante que você controla no decorrer desse joguinho.

Essas rãs amam um goró!

Ihatovo Monogatari começa com nosso protagonista desembarcando de trem na nossa titular cidade, acompanhado da linda trilha sonora composta por Tsukasa Tawada. Ver essa musiquinha em particular sendo reproduzida pelo chip de áudio do SNES é uma experiência tão mágica, sabe? Queria conseguir descrever de maneira mais elegante, mas sou incapaz. É um tema tão poderoso, principalmente no seu arranjamento completo. A maneira perfeita de se apresentar Ihatovo. Um lugarzinho que conquistou o tempo, abraçando um anacronismo que abraça todo o século 20. Um lugar onde o fantástico e o mundano são um só.

Não demora muito para podermos explorar a cidade e conhecer os seus habitantes. Ihatovo Monogatari é uma experiência top-down, com uma estrutura bem semelhante a um adventure tradicional. O jogo conta apenas com um sistema simples de inventário, e na maior parte de sua duração você vai estar batendo um papo com outros personagens. E é justamente nessas conversas que o jogo brilha! Tudo é escrito com uma prosa tão lindinha e sucinta, conseguindo emular o estilo do Kenji até que muito bem.

Mas a escrita também tem algumas características bem únicas. Talvez com um pouco da ajuda da apresentação do jogo em si, mas elas conseguem ser tão evocativas. Transmitem um sentimento de doce melancolia, da dor dos sonhos perdidos pela ganância e perversão dos nossos corações. Do valor dos nossos sentimentos mais gentis, do pouco de altruísmo que carregamos dentro de nós. Do que a gente pode oferecer para o próximo, e para a nossa comunidade.

Tem algo de especial aqui, sabe? Talvez eu só seja sentimental demais, mas o texto desse joguinho fala comigo. Preenche aquele desejo talvez até um tanto imaturo de viver em um mundo com um pouco mais de ternura. Um mundo de corações simples. Longe do cinismo e do materialismo extremo do mundo moderno. Nostalgia a qual não me pertence. Nostalgia por um tempo que nunca existiu.

As coisas mais belas desse mundo costumam ser um tanto que melancólicas, no final das contas! E esse joguinho é belo. Talvez não uma das coisas mais belas, mas de uma beleza inegável. Seja na sua escrita, seja na sua maravilhosa trilha sonora e nos seus lindinhos e simples sprites, tudo torna Ihatovo Monogatari um tiquinho mais especial.

Um coleho em Ihatovo Monogatari fala com um rostinho triste: "A prideful heart invites this sort of fate... Please, do not let yourself fall into the snares of your heart, as I did."
Muitos animais com muitos conselhos.

Ihatovo Monogatari as vezes pode ser levemente frustrante, porém. Um tiquinho. Nada que um guia não dê conta, mas como muitos adventures ele acaba tendo aquela fricção um tanto que indesejada na sua progressão. Os personagens as vezes só não conseguem te orientar tão bem, ou um item pode estar estranhamente escondido. Nada terrível, mas que te tira um pouco da experiência por uns minutinhos. As vezes vários minutos! Mas tudo bem. Logo as coisas voltam ao normal, com a ajuda de um guia ou não.

Chegar até o final é uma experiência tranquila. Quase meditativa, até. Tudo caminhando pra uma conclusão tão serena, mas ao mesmo tempo tão provocante! Um momento quase celestial, um adeus lindo para todas as figurinhas que você encontrou em Ihatovo. Assim como em “Viagem Noturna no Trem da Via Lactea”, talvez tudo não passe do sonho de uma alma cansada por um mundo mais gentil. Talvez seja algo a mais. Certamente foi algo a mais pra mim.

Não poderia recomendar Ihatovo Monogatari muito mais sem acabar sendo um tanto que pedante. A tradução de fãs que circula pela internet é maravilhosa, e vale muito a pena dar uma chance. Talvez não te toque tanto quanto me tocou, mas acho que ao menos a trilha sonora de Tsukasa Tawada já torna a experiência um tanto que mágica por si só.

Uma ilustração em pixel art de Ihatovo Monogatari mostrando um um trem em direção a um céu estrelado: "The Galactic Railroad train soudned its whistle and lifted us all up into the sky."
Amo as ilustrações desse joguinho.

Muito obrigada pela leitura!

Tentarei publicar um textinho parecido toda semana, terça-feira ou quinta-feira, enquanto eu estiver na mercê do desemprego. Mente vazia é a oficina do diabo, não é? Talvez eu aprenda a escrever de maneira um tico menos imatura se eu treinar um pouquinho depois de tanto tempo. Veremos!

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