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Março 6, 2025

Trabalhar faz sentido?

por Lucas D. M. dos Santos

E aí, tudo bem?

Me diz um negócio, caso seu trabalho não existisse, que diferença isso faria no mundo?

Se a resposta for nenhuma, relaxa, você não é o único. Em 2015 quase 40% dos britânicos disseram ter certeza de que seu trabalho não servia para nada.

E por um lado, tudo bem? Trabalho é trabalho, os boletos não vão parar de chegar, quer eu faça algo que considere útil, quer não. Por outro lado pensar que nosso trabalho não tem utilidade não é exatamente agradável. né?

E já que seu trabalho não serve para nada mesmo, pare um pouco e se cadastre na newsletter

Há alguns anos participei de uma reunião com o marketing de uma marca de máquina de cartões. À época eu trabalhava como roteirista e redator autônomo e prestaria serviço para o evento de aquisição de uma outra empresa.

Em dado momento uma funcionária do marketing da marca de cartão ressaltou a importância do evento ao chamar a aquisição de “nosso sonho grande”.

Aquelas palavras ecoaram no meu cérebro por dias.

Para mim o meu papel naquela campanha era basicamente o que David Graeber chamou de Bullshit Job, que eu gosto de traduzir como “Trabalho sem sentido”.

Capa do livro Bullshit Jobs de David Graeber

Bullshit Jobs, para Graeber, são por definição trabalhos considerados inúteis, ou até prejudiciais pelas próprias pessoas que os desempenham. Estamos falando principalmente de lobistas, assessores de executivos, daytraders, um tanto de influencers e criadores de conteúdo de IA para redes sociais, etc.

Além de não contribuírem em nada para a sociedade, os Bullshit Jobs, segundo Graeber, geram sentimentos de ansiedade, vazio e frustração em quem os desempenha. Basicamente como eu me sentia fazendo texto para empresa de cartão.

Se esse sentimento me deslocava da empolgação das equipes de marketing com que tinha de lidar, também serviu para acender uma pergunta em mim:

O que faz com que a mesma geração que reduziu drasticamente o tempo de permanência em um mesmo emprego, também se esforce tanto para acreditar que seu trabalho tem sentido? Mesmo que para isso precise terceirizar o próprio sonho para uma empresa bilionária, pronta a dispensá-la no primeiro gemido de um acionista.

Mais produção, menos significado

Dar sentido à vida através do trabalho não é nenhuma novidade, novo é ter que se esforçar para isso.

Na era pré-industrial seu ofício era seu lugar no mundo. A função social do seu trabalho era óbvia e, caso não trabalhasse no campo, é bem provável que fosse o único da sua localidade a exercer aquela atividade.

Não a toa diversas profissões viraram sobrenomes, como ferreiro (Smith, Schmied, Ferreira).

A revolução industrial retirou esse valor simbólico do artífice. Não há mais o fabricante de calçados, mas sim o funcionário que cuida do couro, o que faz as costuras, o que cola a sola, etc.

Se a produção em massa torna uma infinidade de bens de consumo mais acessível, tanto essenciais quanto supérfluos, ela reduz a necessidade de trabalho e o papel do trabalhador no resultado.

Ainda assim, não o elimina. Colar a sola de um sapato ainda é ser parte do processo que dá origem a um produto palpável, mesmo que inacessível e através de muita exploração.

A expansão da capacidade industrial apontava para um futuro em que o trabalho não precisaria mais ser parte tão importante de nossa vida. Em 1930 o economista John Maynard Keynes afirmou que dali a 100 anos poderíamos trabalhar apenas 15 horas semanais.

Pois é, Keynes, teu prazo tá estourando daqui a pouco e, não sei vocês, mas eu não estou nem perto dessa carga horária.

O que aconteceu?

Flexibilização e Financeirização

Com o crescimento demográfico e o desenvolvimento de técnicas de marketing, o consumo também cresceu, é claro, mas tudo tem limite, até mesmo o quanto a humanidade consegue consumir.

Na segunda metade do século XX isso levou empresas a se voltarem para modelos de produção sob demanda, como o Toyotismo em que os estoques são eliminados e funcionários deixam de ter posição fixa na linha de produção e passam a operar diferentes funções de acordo com a necessidade do momento.

Mas um sistema que exige crescimento constante não pode funcionar com demanda limitada. Assim a flexibilização saiu dos modelos produtivos para desregulamentar o mercado financeiro e assim permitir que capitais destinados a produção se voltassem para a especulação.

Foi o início da era do capitalismo financeiro, ou neoliberalismo. Um modelo que jamais entregaria os resultados prometidos1 e por fim nos levaria à maior crise econômica da história em 2008.

Em 1970 a imensa maior parte do capital financeiro estava investido em ativos relativamente produtivos, como ações de indústrias ou títulos para financiamento de infraestrutura pública, enquanto pouco mais de 10% era destinado a especulação. Ali por 1990 essa relação já havia praticamente se invertido.

Ou seja a maior parte dos investimentos nos últimos 35 anos - pelo menos - não gera qualquer produto palpável, não serve para nada além de especulador ganhar dinheiro.

Legal, e daí?

E daí que a maior parte dos relatos de Bullshit Jobs que David Graeber recebeu estavam justamente no setor financeiro, tanto diretamente quanto em grupos de lobby, marketing e tecnologia que dão suporte a essas operações.

Quem melhor identificou o resultado desse processo de financeirização da economia e flexibilização do trabalho foi um cara chamado Richard Sennet no livro A Corrosão do Caráter. Dica do Fabrício Pontin em uma live do Viracasacas Podcast.

Capa do livro Corrosão do Caráter de Richard Sennet, subtítulo: O desaparecimento das virtudes com o novo capitalismo
Todas as angústias da minha geração estão aqui.

Essa flexibilização na economia - e por consequência nas relações de trabalho - gerou ao indivíduo, uma maior dificuldade em criar sentido para a narrativa da própria vida. Tanto por gerar trabalhos sem propósito quanto ao retirar dele a estabilidade que as antigas estruturas sociais mantinham.

O autor contrasta um faxineiro aposentado, que trabalhou sempre na mesma empresa, com seu filho, consultor financeiro autônomo recém saído de uma corporação que passou por uma onda de demissões em busca de “eficiência”.

Apesar das óbvias dificuldades que o pai encontrou na vida, ele conseguiu dar significado à sua existência, coisa que seu filho, cujos rendimentos sempre foram mais altos, não conseguia fazer.

Obviamente nem todo trabalho flexibilizado é sem sentido, mas o fenômeno dos bullshit jobs é um reflexo claro dessa flexibilização. É aí que, mesmo separados por 20 anos, Corrosão do Caráter e Bullshit Jobs se tocam ao demonstrar as consequências não só econômicas, mas sociais do paradigma econômico atual.

Um modelo que tira o sentido do trabalho, mas não nos permite trabalhar menos.

É preciso escalar, produzir mais, mais rápido, mesmo que a gente na prática não esteja produzindo nada.

Resta correr atrás dos resultados cobrados, seja se dopando com anfetamina, procurando algum coach picareta ou acreditando que os objetivos da empresa são de alguma forma “nosso sonho”.

Tanto faz, no fim do dia ainda somos incapazes de identificar nesse trabalho algum valor à nossa existência.

Quando nossos pais e avós dizem que a vida no seu tempo não era fácil, eles falam a verdade - embora fosse possível comprar um terreno por um décimo do valor atual - seus trabalhos na indústria, construção civil ou serviços básicos eram duros, além de inúmeras vezes abusivos e exploratórios. Ainda assim eles não precisavam se preocupar com a utilidade dele para a sociedade.

Seu avô nunca viu um coach na vida (eu espero) assim como o gari que recolhe seu lixo. Isso não quer dizer que o trabalho do gari não seja duro e por vezes realizado em condições degradantes, ou que ele não trocaria isso para trabalhar de bermuda no ar-condicionado. Mas sim que ele jamais precisou se perguntar sobre a utilidade do seu trabalho por um motivo simples: Ela é óbvia, sem ele em uma semana a cidade vira um esgoto.

Ilustração de um porquinho vestido e trabalhando em um açougue, com a legenda abaixo, mas em inglês.
Trad: Se se seu trabalho não pode ser ilustrado por um porquinho em um livro infantil, ele não acrescenta valor à sociedade.

Pode parecer um contrassenso que uma rotina tão dura possa produzir algum tipo de sentido à existência em meio à dificuldade, então aqui talvez caiba um exemplo: A Parentalidade.

Eu não sou pai, então obviamente não sei nada sobre isso na prática. Mas uma frase que ouvi a respeito ressoa com esse tema, era algo mais ou menos assim: “Desde o nascimento da nossa filha tudo piorou, o sono, a atenção, o tempo, dito isso nossa vida é bem melhor agora.”

Cuidar de uma criança é um ofício difícil por si só e aprendido na prática através de muitas noites de sono e muitas trocas de fraldas (olha o preço delas a próxima vez que for ao mercado), sem falar no resto dos afazeres que continuam a existir. Ainda assim um ofício obviamente necessário.

Acredito inclusive que não seja a toa a parentalidade ganhar espaço em Os Despossuídos, de Ursula K. Leguin. É o mais próximo que conseguimos ter, no mundo atual, da ética de trabalho dos habitantes de Anarres, movida principalmente pelo sentido e pela necessidade que enxergam no que fazem.

Capa do livro Despossuídos de Ursula K. Leguin
Eu já devo ter te falado para ler esse livro.

A parentalidade também é um trabalho de cuidado, ou como David Graeber os chamou caring jobs. O trabalho de enfermeiros, professores, babás, assistentes sociais, psicólogos, cuidadores de idosos, entre tantas profissões que, embora sempre em falta, nunca têm seu valor reconhecido. Forte abraço para a lei da oferta e demanda.

Há um recorte de gênero inescapável aqui, visto que muitos desses trabalhos são culturalmente associados com mulheres. Mas também são trabalhos sem rendimento financeiro, isto é, não escaláveis e que não produzem lucro direto sobre o valor investido2.

Tá, meu trabalho não faz sentido e agora?

A primeira coisa é entender que a culpa não é sua. Se você enxerga seu trabalho como bullshit job talvez seja o primeiro passo para buscar algo que faça mais sentido - foi o que eu fiz, pelo menos - mas isso nem sempre é simples e não é uma obrigação, não são ações individuais, afinal, que modificam sistemas complexos.

A questão talvez seja: O problema é nosso trabalho não dar mais sentido para a narrativa da nossa vida, ou ainda buscarmos esse sentido no trabalho?

Trabalho, afinal, é só trabalho, é para pagar as contas. Para dar sentido à vida a gente participa de grupos de leitura, assiste filmes, tem hobbies, escreve uma newsletter, cuida dos cachorros, se voluntaria em uma ONG, sei lá.

Com certeza isso é bem mais saudável do que ser lobotomizado pela lógica corporativa. Ainda assim há uma crueldade inegável em um sistema que rouba essa oportunidade de dar sentido à nossa história, mas não nos permite reduzir a jornada de trabalho, pois isso diminuiria a produção do país.

Produção de quê?

Aparentemente, de nada.

(1. A média das taxas de crescimento pós 85 é menor do que o período imediatamente anterior e com maior número de crises mundiais. Conforme demonstrado por Ha-Joon Chang em Economia: Modo de Usar.)

(2Embora essa não seja necessariamente uma regra, conforme observado por David Graeber.)

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