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Janeiro 2, 2023

Sobre pão, tempo ou escassez

por Lucas D. M. dos Santos

Lapso Trivial

Sobre pão, tempo e escassez.

Por Lucas D. M. dos Santos

Tem poucas coisas de que eu goste tanto quanto pão. Diria até que é minha comida favorita, especialmente se recém-saído do forno, com uma generosa porção de manteiga que se derrete instantaneamente sobre a fatia. Eu chego a salivar só de digitar essa frase. É nesse momento, a mordida na primeira fatia, que eu penso enquanto faço pão, desde o preparo do pré-fermento até os últimos minutos no forno.

Talvez soe curioso eleger pão como seu alimento preferido em um mundo de tantas iguarias. Afinal, pão é basicamente trigo, água e fermento. Não tem como ser mais comum do que isso. É o alimento diário que nos acompanha e garante nossa sobrevivência desde o período bíblico, a ponto de tornar-se sinônimo de comida em expressões como “pão de cada dia” ou “pão e circo”.

Pão é o alimento da rotina. Já lagosta, caviar, salmão e bifes folheados a ouro são coisas que não se come todo dia e, afinal, são as experiências raras que nos marcam, justamente por sua escassez.

É assim com a Copa do Mundo, que faz com que muita gente adeque seus afazeres para poder acompanhar uma partida entre Catar e Senegal às 10 da manhã de um dia útil. A qual jamais veríamos em outra situação, mas que se torna especial pela espera de quatro anos entre cada edição. Provavelmente se a Copa fosse anual, a gente só assistiria aos jogos do Brasil, talvez das seleções mais famosas e olhe lá. O que torna o evento especial é sua escassez, enquanto dá para assistir tranquilamente uns sessenta campeonatos cariocas ao longo da vida, Copa do Mundo vai ser, com muita sorte, umas vinte.

Porque nada, afinal, é tão escasso quanto o tempo. Quase todo o resto é substituível e contornável, já o tempo não tem jeito, escorre por entre meus dedos enquanto eu digito essas palavras. A gente percebe isso mais claramente em momentos como a passagem de ano, recém atravessada.

Hora de reavaliar o período que se foi e preparar as resoluções para o tempo seguinte. Como se fôssemos, por um breve instante, Jano, o deus romano de duas faces, capaz de enxergar passado e futuro e exercer seu poder sobre todos os começos, não a toa homenageado com o nome do primeiro mês do ano.

Estátua do deus Jano, com duas faces barbadas apontando para direções opostas

Busto de Jano no Museu do Vaticano.

 

A escassez do tempo, porém, não é bem uma novidade, né? A gente sabe disso, especialmente nós que não somos ricos e portanto precisamos vender nosso tempo de trabalho para adquirir os bens necessários à sobrevivência.

Cientes de seu valor, fazemos de tudo para essa commodity render. Estamos sempre em busca de eficiência e produtividade, de realizar mais em menos tempo e com menos recursos. Mesmo a folga deve ser produtiva, há livros para ler, cursos online para fazer e dezenas de séries para terminar de assistir.

Descansar? Só se for para produzir melhor depois. Então monitoramos nosso sono para otimizar as tarefas do nosso dia. Todas planejadas e cronometradas com precisão em horas e minutos que até parecem naturais de tão acostumados que estamos a eles. Quando no fim das contas são apenas medições arbitrárias, até porque, como toda mercadoria, o tempo precisa ser padronizado para uma negociação mais eficiente, de preferência para quem decidiu dividir assim. Se sua rotina de sono e atividades não se adequa a estes padrões, bom filhão, o negócio é se medicar e correr atrás do prejuízo.

E assim corremos atrás do tempo. Enquanto ele segue tranquilo, sempre vários passos à frente, em seu próprio ritmo alheio às nossas neuroses, transformando continuamente nossas experiências em memórias. Tanto as únicas, quantas as banais como a fatia de pão que comi no café da manhã.

Lembra do pão? Pois é, então, eu menti sobre ele. Como diria a Aline Valek, nunca confie no narrador. O pão é mesmo formado por água, trigo e fermento, mas seu principal ingrediente é o tempo. É ele que transforma trigo hidratado em uma massa viva. Não adianta sovar, esticar, dobrar mais vezes ou o que for, para dar certo o pão precisa do seu tempo ali paradinho e coberto.

Eu demorei para aprender isso, até porque se o pão precisa do seu tempo, nós também. Então, longe de achar que sou capaz de dar conselhos (deus me dibre), mas se for para lembrar de algo nesse ano, lembremos que ele vai acabar. Que nosso tempo é escasso e talvez por isso mesmo não deva ser negociado como algo banal.

De qualquer forma, te desejo de verdade um feliz 2023!


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