O seu Tesla não vai salvar o mundo

Você se preocupa com as mudanças climáticas e possui, ou está considerando adquirir, um carro elétrico?
Parabéns você possui uma boa condição financeira! (E, a depender do modelo, uma noção estética questionável.)
Talvez isso também te permita exercer seu “consumo consciente” de outras formas, como escolher produtos orgânicos no supermercado ou naquela feirinha de gente alternativa super mente aberta*. (*brancos de dread)
Pois é, o problema é que embora essas ações deixem claro seu poder aquisitivo, elas não tem qualquer efeito sobre as mudanças climáticas, na verdade , talvez sejam até prejudiciais.
Como é que é?
Então, pra explicar, a gente primeiro vai ter que falar sobre tênis. (Não o calçado, aquele esporte em que todo mundo tem que ficar quieto para ouvir os jogadores gemerem.)

Se você é brasileiro e viveu a era Guga você deve conhecer um pouco desse esporte. Mas mesmo que não conheça, é provável que já tenha ouvido falar de Novak Djokovic, o maior campeão de Grand Slams de todos os tempos (24 no total) e também medalha de ouro nas Olímpiadas de Paris.
E mesmo que você não saiba de nada disso, talvez esse nome ainda não seja totalmente estranho. Djoko chamou bastante atenção em 2022 ao ser impedido de permanecer na Austrália, onde participaria de um torneio, por não ter se vacinado contra Covid19
Apesar dessa pataquada, o tenista diz não ser antivacina, ou ter relação com esse tipo de movimento. Junto com lugares-comuns como “não sou especialista” e “tenho a cabeça aberta” ele declarou apenas defender que a imunização seja uma escolha individual.
Ou seja, cada um cuida da sua própria saúde. Quer arriscar pegar Covid e matar a vovó sufocada? É contigo, campeão!
E tá errado?
Tá. Tá errado pra caralho.

A vacinação precisa ser sempre um esforço coletivo e coordenado, porque ela só funciona ao atingir uma parcela considerável da população. O motivo é simples, a vacina não funciona para todos, então é preciso que muitos se vacinem para impedir a circulação do vírus e assim fazer com que ele não chegue nas pessoas que continuam vulneráveis.
As vacinas não são uma exceção. Problema coletivos praticamente sempre precisam de soluções coletivas. Pode pensar em qualquer um aí, de questões globais como as mudanças climáticas, até as locais, como o trânsito. Nada disso se resolve sem um esforço coordenado, muito menos através do consumo.
Esse é o buraco em que nos metemos. O pensamento neoliberal hegemônico no ocidente transformou o cidadão em consumidor. Ou seja, nossa principal ação política e social se tornou comprar. E se as soluções são um mercado, vai chover picareta com alguma coisa para te vender.
Sempre tem uma nova tecnologia que vai revolucionar de tudo, uma linha de cosméticos que supostamente reforça uma autoimagem saudável (por que precisa de cosmético, então?) e as redes sociais nas quais podemos manifestar nossos anseios políticos e sociais para atingir resultados*. (*Resultados de venda de espaço para anúncio das plataformas.)
Assim apareceram no início do século as grandes empresas de tecnologia super engajadas em diversidade e justiça social, ações que nunca foram muito além dos departamentos de marketing. E que bem, foi só o vento virar que já foram escanteadas sem muita cerimônia.

Talvez o grande símbolo de empresário de tecnologia foi justamente o sujeito que surgiu para liderar a transição energética automotiva e agora faz gestos nazistas e participa do governo que está desmontando as ações ambientais dos EUA. (Que já eram bem meia boca, aliás.)
Ok, não confiar nas boas intenções de bilionário é o básico para não ser otário, mas isso não justifica por que ter um veículo menos poluente não seria bom para o planeta.
A real é que em um cenário ideal - ou seja com matriz energética limpa e reciclagem adequada das baterias - um carro elétrico até pode ser uma opção melhor do que um a gasolina. Mas ainda assim continuará a ser mais poluente per capita do que qualquer modal de transporte público, os quais deveriam ser prioridade, mas viram sucata a céu aberto.
E isso é o cenário ideal, na maior parte do mundo um carro elétrico é basicamente movido indiretamente a carvão ou petróleo, o que só transfere a poluição dos centros urbanos para as periferias das cidades, onde estão as usinas geradoras e onde geralmente vive a população mais pobre. Isso tudo sem contar as emissões necessárias para a fabricação das baterias e a exploração de trabalho semiescravo na mineração de matérias primas como o lítio.
Ou seja, a única diferença entre dirigir uma veraneio a diesel e um cybertruck é que o primeiro não deixa claro para todos ao redor que você é um incel.

Da mesma forma comprar orgânicos não impede o agronegócio de enfiar toneladas de soja com agrotóxico em contêineres mundo afora. Usar sacolas retornáveis, embalagens biodegradáveis e canudo de papel* não diminui a quantidade de plásticos presentes na maioria dos produtos comprados diariamente. (*um dos nomes do diabo)
Isso vale para praticamente qualquer ação individual de consumo. No fim, elas servem para aderir a uma pressão social, especialmente forte através das redes, por comportamentos em grande medida inócuos, mas que servem para mostrar a todos que somos conscientes. Todo post é um publi das nossas virtudes.
E claro, só pode agir através do consumo quem tem recursos para consumir, um carro elétrico custa fácil o dobro de um regular da mesma categoria e para se alimentar 100% de orgânicos com um salário mínimo, só se você mesmo plantar e colher. Todo “produto ativista” acaba sendo também um marcador de classe e um direito ao alívio de consciência para quem pode pagar. Enquanto isso o desmatamento ilegal segue torando na Amazônia.
Aí talvez você tenha chegado aqui com uma conclusão cínica, meio misantrópica. Bom, se não tem nada que eu possa fazer para impedir corporações de torrar toda a água do planeta para rodar uns geradores de textos e imagens medíocres, então já era, estamos na merda, bora meter o louco, comprar um chevette 78, queimar gasolina e dar canudo para tartaruga comer.

Não, porra. Esse texto não é uma desculpa para você parar de separar seu lixo. Se você tem o mínimo de alteridade, é sim uma obrigação ética fazer o possível para combater as mudanças climáticas, a desigualdade e pelo jeito vamos ter que incluir na lista o nazismo descarado. Inclusive, é por isso que eu mudei essa newsletter do Substack para o Buttondown já que o CEO da outra plataforma deixou claro que não tem problema nenhum com conteúdo nazista circulando por lá.
Isso pode parecer hipócrita, aplicando a mesma lógica de antes, não é porque eu saí de lá que não vai mais ter plataforma para nazista na rede. É que o problema não está na efetividade ínfima das nossas ações frente ao problema, mas no efeito que elas tem em nós mesmos.
Kohei Saito atualizou o adágio de Marx ao dizer que “A ecologia é o ópio das massas”. As ações de consumo não são apenas inúteis, ou até danosas, elas funcionam como indulgência. Com meu cartão de crédito eu limpo minha consciência e vivo tranquilo por ter feito minha parte. Se as mudanças climáticas continuam aí a culpa é de quem não faz nada, eu comprei o meu pedaço de cruz.
Só que adotar práticas menos poluentes - separar o lixo, comprar de produtores locais ou até de movimentos sociais (quando possível) - é o básico. O mínimo que a gente deveria fazer e em grande parte das vezes nem precisa acontecer através do consumo. Mas se a gente quer mesmo evitar que nossos filhos, sobrinhos e netos herdem um calor ainda mais infernal que esse, com enchentes ainda piores, a gente vai precisar de mais.
Vai precisar fazer política. E política é sempre um ato coletivo. Se organizar para somar vozes, propor e cobrar ações coordenadas e assim talvez evitar as boiadas que continuam passando, mesmo no governo Lula*.(*Obviamente nada comparado ao absurdo que acontecia no governo anterior, por favor, não sejam tapados.)
Se a gente quiser mesmo tentar, é assim que talvez tenhamos uma chance. Até fazer isso, ter um cybertruck só vai servir para ganhar fama de virjão mesmo.
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