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Julho 15, 2022

O problema com o True Crime

por Lucas D. M. dos Santos

Lapso Trivial

O problema com o True Crime

Por Lucas D. M. dos Santos

Oi, tudo bem?
 
Não sei vocês, mas eu gosto muito de histórias de investigação. Elas invariavelmente começam com um crime inexplicável, em boa parte das vezes um assassinato. As minhas histórias favoritas, no gênero, são as mais pitorescas, em que o investigador encontra pistas pouco ortodoxas que formam algo mais próximo de um enigma - para o público tentar desvendar antes do protagonista - do que uma trama dramática.
 
Com o passar do tempo – e a evolução dos métodos investigativos do mundo real – o gênero de investigação se tornou mais realista, pautado em provas de DNA que surgem na hora certa e interrogatórios de suspeitos. Detetives excêntricos como Sherlock Holmes ou Hercule Poirot perderam o protagonismo que já tiveram, embora ainda haja espaço para enigmas pitorescos, como no filme Entre Facas e Segredos (Knives Out, 2019).

Uma das variações do gênero que ganhou espaço nas últimas décadas, muito devido à popularização de formatos serializados, é o True Crime, ou em português, crimes reais. Neste formato, homicídios, assaltos espetaculares, entre outros crimes são contados através de artifícios narrativos, como ganchos e reviravoltas. Truques que remetem de forma até perturbadora às ficções do gênero, com uma diferença nada singela, expressa no próprio nome, os crimes aqui são reais e assim também são as vítimas e seus familiares.

Se nas narrativas ficcionais a morte é apenas o estopim que dá início ao motor narrativo, em histórias reais é o encerramento de uma vida. Um evento que perde importância frente às pistas para encontrar o assassino, análises de modus operandi e especulações sobre os acontecimentos que muitas vezes apenas trazem notoriedade ao perpetrador do crime, eventualmente alçado ao posto de celebridade, vide as cartas de fãs enviadas a Charles Manson.
 
Justiça seja feita, nem toda narrativa de crime real se apresenta dessa forma. O podcast Projeto Humanos, de Ivan Mizanzuk, narrou em sua terceira temporada o Caso Evandro, a história do assassinato do menino Evandro Ramos Caetano e a posterior condenação de sete acusados através de uma investigação ilegal. No podcast, ao invés de incorrer em uma busca pelo hipotético culpado, Ivan exibe as irregularidades da investigação e julgamento. Ao fim prova a inocência dos acusados perante a lei.

Ainda assim, ao pesquisar por comunidades de ouvintes não é difícil encontrar pessoas mais preocupadas em especular sobre possíveis culpados e outros aspectos da história, eventualmente incorrendo em ideias conspiratórias, como a suposição de que Evandro ainda estaria vivo, o que além de absurdo é um desrespeito com sua família. É nesse comportamento – presente tanto em alguns criadores quanto em consumidores de conteúdos de True Crime – que reside meu principal incômodo. Crimes reais não são tramas criadas minuciosamente para desafiar e surpreender o público, mas resultado de problemas psicológicos e sociais - entre outros - das pessoas que perpetraram estes crimes.
 
O próprio Caso Evandro mostra como no mundo real, crimes nem sempre têm solução. E mesmo quando têm, elas não obedecem a ordens e estruturas narrativas. Em uma das reviravoltas cruéis do caso, a ossada de Leandro Bossi, uma das crianças desaparecidas à época, só foi reconhecida após a morte de seu pai, o qual passou o resto de sua vida em busca do filho, sem jamais conhecer seu destino.
 
Crimes reais não obedecem regras, deixam pontas soltas, as motivações de assassinos nem sempre fazem sentido e estas histórias invariavelmente envolvem um trauma familiar revisitado como espetáculo, além de resumir uma vida ao seu momento final, para servir de estopim à trama.

Eu não quero me pagar de iluminado aqui. A morte aguça nossa curiosidade e é irresistível não conjecturar sobre o que leva alguém a se dar o direito de encerrar uma vida. É um comportamento que nos fascina por expor partes de nós que, por sorte, mantemos escondidas. Além disso, entender os fatores que levam a acontecimentos traumáticos e seus desdobramentos pode ser uma boa forma para nos reavaliarmos enquanto sociedade e, quem sabe, prevenir para que não voltem a acontecer.

Mas me desculpem azedar a diversão, não consigo deixar de torcer um pouco o nariz para a naturalidade com que tratamos a exploração de sofrimentos reais como mecanismos narrativos, para contar histórias que colocam os assassinos como protagonistas enquanto relevam – muitas vezes – às vítimas apenas ao fato final de sua vida. Um papel de figurante que nunca pediram para fazer e pelo qual pagaram um preço alto demais.
 
Até semana que vem!



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