Ninguém é democrata com fome

Ninguém é democrata com fome
E aí, tudo bem?
Se você se preocupa com o estado da democracia no Brasil, é provável que não muito, né?
De acordo com o índice V-Dem o Brasil foi o país que mais se afastou da democracia no ano de 2020. O índice varia entre 0 e 1, sendo 0 o pior cenário e 1 a democracia ideal. O Brasil que já pontuou entre 0,78 e 0,80 nos anos de 2005 a 2013, estacionou em 0,51 de 2020 até 2022.
Estamos não apenas em uma crise ambiental e econômica, mas também democrática. Pessoalmente acredito que uma reeleição do governo atual tenda a agravar essa situação. Oliver Stuenkel já demonstrou que é no segundo mandato que autocratas, de direita e de esquerda, atacam com mais força as instituições democráticas.
Porém, se você está preocupado com a democracia, é bem provável que você também tenha um teto sobre sua cabeça e a garantia, ao menos a médio prazo, de comida na mesa.
Eu não quero com isso dizer que miseráveis são ignorantes ou acríticos, Carolina Maria de Jesus já enterrou esse ponto há mais de sessenta anos. Por outro lado, seus relatos diários são permeados por um personagem infame, a fome e com ela a necessidade diária de encontrar uma forma de alimentar a si mesma e seus filhos.
Um conceito que pode ser abstrato para nós, cidadãos de classe média, a fome é capaz de nublar a percepção e afetar até mesmo indivíduos bem alimentados, como juízes, cujas decisões sofrem influência dos períodos de fome ao longo do dia. Imagine então de quem vive sob a tortura constante de um estômago vazio e um organismo mal nutrido. Sem tempo e energia para pensar em nada além de se livrar das garras do seu torturador.
O livro Armas, Germes e Aço, do biólogo Jared Diamond, demonstra que a espécie humana só alcançou algo próximo de uma sociedade após domesticar plantas e animais, dar início à agricultura e assim atingir o superávit alimentar necessário para que alguns indivíduos pudessem receber funções além da busca por comida.
Não é coincidência que a maior parte das revoluções da história tenha surgido entre as classes abastadas. Bem como que as interpretações sobre a fome sejam geralmente feitas por analistas muito bem alimentados. Aos famintos não falta consciência, mas energia e tempo para buscar algo além da sobrevivência diária, afinal, enquanto se escolhe ossos entre sobras de supermercado, não sobra tempo para qualquer outra análise.
Há quem veja os famintos como dignos de benevolência, outros como um peso morto para a nação. Se outrora foram culpados pelo sucesso eleitoral de governos de esquerda, são agora a massa que impulsiona a recuperação de Bolsonaro nas últimas pesquisas eleitorais. Essas análises costumam falar mais sobre as crenças dos analistas do que da realidade de quem tem fome.
É claro que programas sociais angariam votos de quem encontra neles a solução para uma urgência. Aqui do décimo andar pode parecer difícil de entender como essa pessoas não se preocupam com a possível eleição de um candidato que agiu com descaso em uma pandemia e desrespeita diariamente as instituições democráticas, mas no lugar de um sujeito que não sabe se terá o que comer amanhã ou depois, é provável que todos aqui mandem as instituições à merda - desculpem-me o francês - e façam a escolha que resolva seu problema imediato.
Podemos discutir qual o método deve ser empregado para erradicar a fome, mas deixar de prover o mínimo a quem não teve sorte na loteria do nascimento é uma escolha imoral para qualquer sociedade.
É óbvio que a construção de instituições sólidas vai muito além da erradicação da fome e da pobreza extrema. Porém, até que isso aconteça, esforços de conscientização política ou formação democrática continuarão a ser paliativos, com algum valor, mas um efeito maior em aplacar a consciência e alimentar o ego de seus autores do que promover um avanço democrático real.
Acabar com a fome não é salvar um grupo de pessoas, que apesar das dificuldade sobrevive diariamente a esse problema. É, sim, dar a estes indivíduos o direito de decidir se preocupar, ou não, com questões abstratas como o estado de direito e expandir o debate democrático a pessoas para quem o número de refeições diárias não é baseada nas dicas de um influencer fitness.
Eu chego até aqui com a sensação de que escrevi uma grande platitude, uma obviedade, ainda assim em 2022 a fome segue parte integrante da formação e identidade brasileiras. Dos quadros de Portinari e já citados diários de Carolina Maria de Jesus até as manchetes que retratam a miséria atual em sua face mais nefasta.
O combate à fome pode não nos garantir uma democracia plena, mas ignorar esse problema é a senha para continuarmos a percorrer o longo passado que temos pela frente.
Até semana que vem!
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