A democracia não é eficiente
Ela deveria ser?

E aí, tudo bom?
Confesso que eu tô um pouco nervoso, essa introdução tem boas chances de me complicar lá em casa, mas vamos lá:
Estar em um relacionamento nem sempre é simples. Toda pessoa casada – ou que vive junto de seu companheiro – sabe que é preciso encontrar um equilíbrio entre as vontades, interesses e inclinações de ambos.
Às vezes é possível achar a solução ideal para todos, mas eventualmente é preciso ceder um pouco de cada lado, para acomodar as diferenças envolvidas no relacionamento.
Isso vale para questões simples, como assistir a um filme, decidir onde passar as férias ou o que jantar no fim de semana. Mas também para aquelas decisões que definem o futuro do casal, como mudanças de endereço, até de país e ter ou não ter filhos.
Pois é, filhos, bem o que faltava para tornar essa equação ainda mais complicada. Esses seres que no início da vida apenas acordam e choram aleatoriamente – a despeito do cansaço dos pais – eventualmente crescem e se tornam pequenas pessoas com seus próprios interesses e vontades, prontos para tomar uma parte ainda maior do orçamento e do tempo da família.
As alternativas são: Viver sozinho – e se essa é a sua vontade, tudo bem, mas acredito que não seja o caso de qualquer um que tenha constituído uma família – ou participar de um arranjo patriarcal de séculos passados, com todas as escolhas nas mãos de um líder, a despeito da vontade dos demais.
Um formato claramente mais eficiente, especialmente para quem for favorecido por estas escolhas, já para todo o resto...
Pois é, eu sou o Lucas e você está lendo o Linhas Cruzadas, uma newsletter sobre tudo o que nos conecta ou separa, às vezes com analogias que podem me fazer dormir na sala.
Se preferir, você pode ouvir este texto pelo Podcast Cruzando Linhas, disponível em todas as plataformas.
Não tem jeito, juntar pessoas em torno de uma decisão nunca é fácil, no mínimo exige tempo e paciência para encontrar um acordo que seja minimamente bom para todos. E quanto mais gente, mais complicado, então desde já eu desejo sorte a todos os envolvidos com poliamor.
Qualquer um que já tenha rachado a conta no restaurante ou participado de uma reunião de condomínio sabe do que estou falando. Se extrapolarmos isso para o jogo político em diferentes esferas de poder, só piora.
As disputas são desagradáveis para qualquer observador e o seu resultado nem sempre está de acordo com os nossos desejos, eventualmente são exatamente o contrário. E mesmo quando seguem em uma direção mais próxima ao que acreditamos, tudo parece demorar muito tempo para acontecer.
Não é a toa que a lentidão da burocracia pública é um grande clichê. Existem entraves de todo tipo, econômicos, ambientais, legais, entre outros. Sempre tem alguém para contestar, mais uma comissão do congresso para discutir, mais uma assinatura faltando e a ameaça de um ministro que pode sempre anular tudo.
A impressão que fica é que poderia haver uma alternativa mais eficiente a isso.
E bom, realmente há.
É bem provável que você conheça alguém que já foi a Dubai, Abu Dhabi, ao Catar ou outro emirado desses do Golfo Pérsico. Talvez tenha sido seu chefe, um amigo que foi à copa do mundo, algum parente ou até você mesmo.
Seja qual for seu contato com estes locais é difícil escapar do fascínio exercido por seu desenvolvimento quase mágico.
Onde há pouco mais de três décadas havia apenas areia, surgiram cidades fabulosas, onde hoje estão o maior edifício do mundo, restaurantes e shopping centers de luxo, mansões e hotéis construídos com mármore e ouro, vastos campos de golfe e montanhas de neve artificial em pleno deserto.
Sem falar no exemplo mais recente: A construção dos Estádios para a Copa do Mundo no Catar, entregues sem atrasos ou denúncias de superfaturamento.
Além disso, os cidadãos destes países recebem mordomias como ter seus estudos pagos pelo governo até o doutorado, apartamentos de graça ao se casarem e plano de saúde gratuito para toda a família.
Como isso tudo é possível?
Bom, primeiramente graças à descoberta de grandes reservas de petróleo, ainda na primeira metade do século XX. O Oriente Médio, região onde estão estes países, detém 64% do petróleo do mundo, o que faz com que tenham poder sobre a escassez – e consequentemente o preço – dessa commodity. Além disso o petróleo presente na região é mais fácil – e consequentemente mais barato – de extrair do que em locais como no Brasil, onde a produção de um barril custa quatro vezes mais do que nos países do Golfo Pérsico.
Mas a vantagem geológica é apenas uma parte da história. Estas cidades, como Dubai, também foram em grande parte construídas por imigrantes sem direitos, impedidos de voltar para casa, alojados em locais insalubres e obrigados a trabalhar sob o sol do deserto.
Uma história se repete entre os trabalhadores vindos de países como Etiópia, Filipinas e Bangladesh. Um agenciador aparece no vilarejo e oferece a eles a possibilidade de receber um bom salário por oito horas de trabalho diário, com direito a acomodação e comida, em troca pede um pagamento adiantado pelo visto de trabalho. Segundo ele uma quantia paga facilmente nos primeiros meses no novo emprego.
Assim que desembarcam em Dubai seus passaportes são confiscados pela construtora, os imigrantes descobrem que devem trabalhar por 14 horas diárias no calor do deserto, em temperaturas que podem chegar a 55 graus, por menos de um quarto do salário prometido. Sem passaporte, nem dinheiro para voltar para casa, eles são obrigados a trabalhar por um salário muito menor do que recebiam em seu país de origem até conseguirem pagar os custos de sua ida para lá. A maior parte deles jamais vê suas famílias novamente.
Durante o dia carregam tijolos e sacos de cimento de cinquenta quilos sob um sol infernal. Suam tanto que chegam a ficar sem urinar por dias ou semanas. À noite dormem amontoados em apartamentos precários que cheiram a esgoto e suor, em uma cidade dormitório chamada Sonapur – “Cidade do Ouro” no idioma Hindi.
Os quartos são pequenos, onze homens compartilham o espaço em beliches de três andares. Não há ventiladores, muito menos ar-condicionado. Nos dias mais quentes dormem no chão, no telhado, em qualquer lugar em que possam pegar uma brisa por menor que seja.
Suicídios são comuns, mas são tratados pelas autoridades como acidentes, assim como as inúmeras mortes causadas pela exposição ao calor ou excesso de trabalho. O número total de mortes é um mistério, segundo a ONG Human Rights Watch.
Eu tirei essas informações de matérias sobre Dubai da Revista Piauí e do Daily Mail, de 2009 e 2014 respectivamente. Embora não tenha encontrado notícias mais recentes sobre a questão, as informações reveladas nos últimos anos sobre os trabalhadores empregados no Catar para a construção dos estádios da Copa do Mundo, não sugerem qualquer mudança.
A história é muito parecida: Imigrantes de países pobres impedidos de voltar para casa, em jornadas exaustivas e sem qualquer segurança morreram aos montes durante a construção dos estádios. Alguns relatórios apontam mais de seis mil mortes desde o anúncio do Catar como sede da Copa do Mundo de 2022
Aí você talvez se pergunte: Como países tão ricos permitem que trabalhadores sejam escravizados e morram aos milhares? Não há leis que os protegem?
Então, não.
Estes locais são chamados de emirados pois são liderados por um Emir, que significa literalmente “príncipe”. Ou seja, por mais que se vendam com modernos centros de comércio, são monarquias absolutistas, regimes medievais, em que a palavra do Emir, ou do Sheik, ou do Sultão, é a lei.
Isto significa que além da situação precária dos trabalhadores imigrantes, os moradores destes países e até mesmo seus visitantes não possuem qualquer direito político. Recentemente oradores de uma conferência sobre o clima e saúde nos Emirados Árabes Unidos foram instruídos a não protestar ou “criticar corporações” do país, que sediará a COP 28 da ONU em novembro e dezembro deste ano, sob a aspa ameaçadora de que “qualquer caso de protesto perturbador será resolvido pelas autoridades locais“.
Isso em um dos países mais insustentáveis – do ponto de vista ambiental – no mundo, com o consumo de recursos naturais muito acima do que são capazes de fornecer, além do pagamento pelo lobby mundial contra legislações ambientais mais rígidas à venda e produção de petróleo.
Nada disso, porém parece ser um problema para os cidadãos que gozam das vantagens oferecidas pelos regimes. Para eles esse é um sistema bem eficiente, assim como também o é do ponto de vista econômico.
No livro “O Economista Clandestino” – The Undercover Economist (2006) – Tim Harford afirma que uma situação econômica é eficiente quando não é possível que uma parte tenha ganhos sem que a outra perca ou que as pessoas ao redor sejam prejudicadas.
Ao dar direitos políticos aos cidadãos dos Emirados Árabes, criaríamos entraves como oposição, fiscalização de contas e de condições de trabalho. O que poderia ser um ganho para os trabalhadores e cidadãos que almejam um país livre, prejudicaria a construção civil, o crescimento da região e até mesmo os cidadãos contentes com as mordomias que recebem as custas da extração de petróleo e do trabalho escravizado de imigrantes.
Pode parecer um jeito estranho de ver a eficiência, mas o próprio autor lembra que uma sociedade eficiente não é necessariamente justa ou desejável. Um mundo hipotético em que Elon Musk detém toda a riqueza, enquanto o resto de nós morre de forme seria considerado eficiente, afinal não é possível alimentar o restante da população sem que Elon perca alguma coisa.
Do ponto de vista econômico o fim da escravidão no Brasil também foi uma medida ineficiente, visto que os fazendeiros tiveram de começar a pagar por mão de obra, embora, é claro, tenham sido fartamente recompensados por esta ““““perda””””. O Diário do Brasil à época retratou o desespero dos mercados com o aumento da dívida pública, perda de valor dos papéis de crédito e fugas de investimento, chamados pelo jornal de “Fructos do Abolicionismo”. Se estes termos lembram algo das notícias atuais, pode não ser só coincidência.
Para um sistema que busca crescimento constante, a fiscalização de governos e empresas será sempre ineficiente. Se um regime autoritário for estável, como são as monarquias árabes, ele se torna muito mais atraente para investidores que não queiram lidar com direitos trabalhistas ou legislações ambientais.
Tanto é assim que mesmo o autoproclamado bastião da democracia no mundo – Os Estados Unidos da América – não hesitaram em apoiar ditaduras sanguinárias na América Latina durante o século XX, para evitar que estes países caíssem na rede de contatos de Moscow. E mesmo após a guerra fria continuam sem ver grandes problemas em regimes totalitários como os Emirados Árabes Unidos, ou a Arábia Saudita quem em 2018 assassinou o jornalista Jamal Khashoggi, crítico ao regime, em uma embaixada.
Para ser justo com os norte-americanos, poucas democracias parecem dispostas e comprar briga com os países que controlam o preço do petróleo no mundo. Ainda mais por possuírem dinheiro o suficiente para encher o bolso de lobistas a favor de uma indústria prestes a levar o desequilíbrio ambiental a um ponto irreversível, enquanto em Dubai continuam a gastar 15 milhões de litros de água por dia para irrigar campos de golfe que nem deveriam existir.
Mesmo a nossa imprensa – tão defensora da democracia – não parece se importar em celebrar o papel de Dubai como centro de comércio mundial e demonstra clara empolgação com as obras na região, como deixa claro essa matéria do fantástico sobre o estádio Cidade da Educação, construído para a Copa do Mundo do Catar.
Esse conto das mil e uma noites, sobre uma cidade de maravilhas cheia de ouro em pleno deserto, vem sendo contado para nós ao longo dos últimos vinte anos. Por coincidência, ou não, o mesmo período em que vimos decair os valores democráticos ao redor do mundo.
A democracia, afinal, não é compatível com reinos encantados e cidades de ouro, sua função não é – ao menos não deveria ser – a eficiência a qualquer custo, mas uma divisão tão justa quanto for possível de poder político e social, para acomodar de alguma forma as diferentes demandas e anseios da sociedade.
Isso é algo bem mais fácil de falar do que fazer, é claro. Os interesses de grupos diferentes quase sempre resultam em cabos de guerra sem fim e mesmo quando terminam, alcançam soluções que dificilmente são ideais para todos.
Os cidadãos acompanham todo esse processo feio, sujo e doloroso. Quanto mais democrático, pior, pois mais à mostra ficam as nossas vísceras enquanto sociedade. Ao invés de histórias de príncipes e princesas em reinos idealizados, acompanhamos a demissão de ministros, bate-boca entre representantes públicos e as negociações e disputas pelo poder, enquanto a sociedade se divide em torno dessas escolhas.
Quantas vezes nos últimos anos falamos de um país dividido? A divisão assusta, gera atrito – e certamente não deveria se estender às relações familiares como tem acontecido – mas a divisão é também uma condição para a democracia. Nos dividimos em partidos para que o poder possa ser, justamente, partido e não caia nas mãos de um líder totalitário.
Mais do que permitir que a gente vote e alterne governantes, a democracia é o único regime capaz de responsabilizar seus mandatários e mantê-los minimamente dentro da lei. Nem sempre é possível e como tudo na democracia é mais bonito de falar do que fazer, mas enquanto eu escrevo esse texto o ex-presidente norte-americano Donald Trump é indiciado por 34 crimes, Jair Bolsonaro foi impedido de contrabandear dezesseis milhões de reais em joias por um agente concursado da receita federal. Anderson Torres, ex-ministro da justiça ligado aos atos antidemocráticos de 8 de janeiro está preso e é investigado por uma possível tentativa de impedir o voto de eleitores nordestinos na última eleição.
Nenhum destes processos é perfeito, mas tente imaginar o mesmo acontecer com Mohammed bin Rashid Al Maktoum, emir de Dubai, ou Mohammad bin Salman, príncipe herdeiro da Arábia Saudita. Conseguiu? Pois é, nem eu.
No fim das contas a sociedade ideal não existe, assim como não existe família perfeita. Sempre haverá brigas, disputas, crises, mas também reconciliações e a ideia de um futuro em comum, apesar das diferenças. A capacidade de ouvir o outro e aceitar as vozes discordantes vale mais a pena do que qualquer suposta eficiência decidida por poucos sobre o sacrifício de muitos.
Assim como a vida familiar, a política democrática é a arte do possível. E o possível tem o dom de irritar quem almeja ideais, sejam quais forem. Mas também é o único sistema capaz de se ver, dentro do possível, pelo que realmente é. Bruto, complexo, sujo e sem Cidades de Ouro que parecem brotar no deserto, mas são apenas a miragem que esconde uma tragédia humanitária e ambiental.
Como sempre, obrigado pela leitura e até a próxima!
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