Lagom Insights: uma pesquisadora pôs a escala 4x3 em empresas alemãs
Uma professora alemã pôs os alemães a trabalhar em escala 4×3
por MARCELO SOARES
Por um ano, até fevereiro, morei em Münster, uma simpática cidade alemã onde minha mulher fazia pós-doutorado. Lá, conheci diversos pesquisadores com trabalhos fascinantes, incluindo a professora Julia Backmann, que dirige o Laboratório de Transformações no Mundo do Trabalho.
Esse laboratório, em parceria com uma consultoria de administração, fez uma pesquisa muito interessante sobre como funcionariam empresas cujos funcionários trabalhassem em uma semana de quatro dias. Em termos do debate atual brasileiro, seria uma escala 4 por 3, como a que está atualmente em discussão na Câmara dos Deputados. A pesquisa durou seis meses, com mais de 40 empresas de vários setores. A experiência funcionou tão bem que a maior parte dessas empresas decidiu manter a nova escala depois do experimento. Com as alterações feitas à maneira de trabalhar para se adaptar ao 4x3, até a quantidade de horas extras que os funcionários antes faziam foi reduzida –e os salários não baixaram.
Backmann trabalha num anexo do imponente Schloss, que há 70 anos abriga a sede da Universidade de Münster. O prédio foi a última mansão em estilo barroco construída na cidade, em 1787, para a residência do príncipe-bispo da cidade (tinha isso). Na Segunda Guerra Mundial, quando mais de 90% dos prédios do perímetro urbano da cidade foram destruídos por bombardeios aéreos, o Schloss pegou fogo. Na reconstrução da cidade, a universidade topou bancar a reforma do imóvel desde que ele passasse ao patrimônio da instituição.
Quando você pensa na relação entre os alemães e o trabalho, certamente sua ideia é muito diferente da realidade, ao menos nessa região da Alemanha onde vivi. Eles têm uma relação muito diferente da nossa com os horários, dias e até formas de organizar o trabalho. Antes das 10h e depois das 20h, você só encontra bares e restaurantes abertos. No começo da manhã, é comum ver jovens famílias na rua com crianças pequenas correndo metros e metros à sua frente. Aos domingos, até farmácias e supermercados fecham; apenas padarias e restaurantes funcionam. No lugar onde morávamos, se alguém nos via trabalhando às 19h na área comum, até estranhava. Nas padarias, o mesmo funcionário tomava o pedido, fazia o café e recebia o pagamento. Se você estiver no trem quando dá o horário do maquinista, ele avisa para todo mundo descer na próxima estação e aguardar o próximo.
(Claro que a experiência dos imigrantes é em muitos casos muito diferente. Mas às sextas eu às vezes tomava cerveja com um engenheiro colombiano que foi para lá trabalhar em demolições e ganhava mais do que na sua profissão em seu país. Às 19h ele já tinha sextado e feito o primeiro brinde.)
Conversei com a professora em novembro, num final de tarde –que, por essa época do ano e naquela latitude, é por volta das 16h. Sua assistente de pesquisa nos serviu um café e encerrou o expediente para buscar seu filho na escola.
Quando um assunto me interessa, eu gosto de explorá-lo ao máximo, e as transformações no mundo do trabalho são muito interessantes para mim. Por isso, a entrevista ficou um pouco longa. Sempre que vou fazer uma entrevista sobre um assunto que me fascine, acabo me preparando para passar no mínimo duas horas, se a agenda do entrevistado permitir. Esta é um desses casos.
Originalmente, a ideia era que esta conversa virasse uma reportagem mais aprofundada sobre os resultados do estudo, visitando algumas das empresas que mantiveram a escala 4 por 3 depois do período da pesquisa, mas não consegui agendar a visita no final do ano e logo em seguida veio a fase de preparar a mudança de volta para o Brasil. Então, aproveito aqui na newsletter alguns trechos da entrevista, aproveitando o 1o de maio.
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O que você pesquisa no Laboratório de Transformações no Mundo do Trabalho?
Basicamente, analisamos mudanças tecnológicas e sociais e como elas impactam no trabalho, na colaboração e na liderança. Os desafios de colaborar, trabalhar juntos. Então a semana de horários flexíveis é um tópico que faz parte do nosso escopo. Temos no total sete pesquisadores, dois de pós-doutorado e cinco de doutorado. No projeto da semana de quatro dias também tivemos apoio de estudantes de mestrado, porque a coleta de dados foi muito forte e precisava ser feita em um período muito curto de tempo, com muitas viagens.
Por que escolheu pesquisar a semana de trabalho de quatro dias?
Minha pesquisa observa mudanças e transformações, e, obviamente, na redução do tempo de trabalho mantendo as mesmas compensações salariais. Nas empresas que pesquisamos, uma condição é que os salários permanecessem os mesmos. É bastante interessante porque muitas outras mudanças são realmente necessárias para fazer isso acontecer. Obviamente, não é só reduzir as horas de trabalho que num passe de mágica tudo ficará melhor. Há um processo trabalhoso e, se você estiver aberto a isso e aceitar que precisa encontrar maneiras de fazer seu trabalho melhor do que antes, você pode realmente ganhar com essa experiência, e foi isso mesmo que aconteceu.
Quando você diz que não houve redução no pagamento, no caso, não foi reduzido o salário mensal, certo? Na prática, então, aumentou o pagamento por hora?
Sim, as horas de trabalho foram reduzidas e não houve redução no salário mensal. E pudemos ver que as organizações reduziram significativamente tanto as horas de trabalho quanto os dias que as pessoas trabalhavam. Curiosamente, o número de horas extras, ou seja, as horas trabalhadas além do que diz o contrato e que precisam ser pagas a mais, também foram reduzidas. Ou seja: não foi que, com o tempo reduzido, as pessoas precisaram fazer mais horas extras. Elas realmente reduziram as horas. E a maioria das organizações disse que aconteceu o mesmo. Elas adaptaram outras coisas e isso foi um processo. Quando perguntamos a elas três meses depois de terem começado, já diziam, ok, isso é bastante desafiador e fica bastante intenso e assim por diante. Mas, após seis meses, a maioria das organizações encontrou uma nova rotina, se você quiser, para apenas reestruturar, redirecionar seu trabalho.
Como foram escolhidas as empresas que participaram do projeto? Elas tinham algum tipo específico de atividade?
Estudamos 45 organizações que se inscreveram para começar a semana de quatro dias, começando ao mesmo tempo. O conjunto final de dados é baseado em 41 organizações, já que uma começou antes, outra depois e duas organizações pararam o teste após dois meses. Nós as selecionamos com uma agência de consultoria de Berlim, que tentou equilibrar para que tivéssemos organizações maiores, pequenas organizações, diferentes indústrias representadas. Quase 300 empresas se inscreveram, mas a maioria trabalhava com base em escritórios, como agências e serviços profissionais. Esse é um setor que tradicionalmente tem mais facilidade em mudar metodologias. Por isso selecionamos um conjunto bem diversificado: indústrias, creches, fornecedoras de energia, comércio.
Algum tipo de organização se beneficiou mais facilmente?
A amostra fica menor se olharmos para áreas específicas, se focarmos apenas, por exemplo, em serviços sociais ou apenas em organizações menores ou maiores. Mas o efeito principal que vimos não foi nem pelo tipo de atividade, mas o tamanho da empresa parece ter sido um fator mais decisivo. Como uma primeira indicação, organizações maiores podem ter achado mais difícil mudar por causa de todas as outras mudanças que isso acarreta. E elas provavelmente não são tão flexíveis em se adaptar, enquanto organizações pequenas acham mais fácil se adaptar. Então, para organizações maiores você provavelmente precisa ter um processo mais longo e um preparo mais intenso, eu diria, para fazer essa mudança acontecer. As duas organizações que pararam o teste após dois meses eram das maiores, uma com 2.500 funcionários e a outra com 700 e poucos funcionários. E, quando estiveram no projeto, as duas colocaram apenas uma parte de suas equipes para testar a semana de quatro dias com pagamento integral, enquanto o resto continuou como antes. Isso também criou um pouco de tensão interna.
E com os trabalhadores? Algum perfil de trabalhador se adaptava mais fácil do que outros?
Nos dados quantitativos, isso não aparece. Mas nas entrevistas vimos que parece que, digamos, funcionários homens de meia-idade acharam um pouco mais difícil porque trabalharam nessas funções por 25 anos ou mais. Acharam difícil mudar seus processos de trabalho, mas alguns também admitem que o modo como sempre fizeram talvez não seja o melhor. Então, vimos alguns casos onde alguns dos funcionários homens, 55 ou um pouco mais, estavam relutantes em mudar e apenas continuaram trabalhando da mesma forma que antes. Também descobrimos que variava a maneira como as empresas reduziram as horas de trabalho. Algumas cortaram 10%, ou seja, quatro horas, e distribuíram as 36 horas restantes em quatro dias de nove horas. E então, basicamente, a jornada aumentou em uma hora. Outras realmente reduziram um dia de trabalho completo, ou 20% das horas. Também vimos que, se você tem filhos pequenos e está numa empresa que corta 10% das horas, pode haver colisão entre o dia mais longo e o horário de deixar ou buscar os filhos na escola ou creche. Então, isso poderia ser um problema. Alguns acharam mais intenso trabalhar numa jornada mais condensada, porque eles teriam de fazer o mesmo que faziam antes nesse tempo mais curto. Mas, no geral, as pessoas estavam muito mais satisfeitas com suas vidas, especialmente com seu tempo disponível para fazer o que gostam e conviver com família e amigos. Não foi necessariamente a satisfação com o trabalho que aumentou, mas a satisfação com a qualidade de vida.
Antes do teste, como as empresas foram orientadas sobre que tipos de mudanças fazer?
Como já mencionei, envolvemos uma consultoria que ajudou as organizações com essas mudanças. Eles ofereceram vários workshops sobre o que podia ser mudado para encaixar o trabalho num cronograma de quatro dias por semana. Podiam usar inteligência artificial para ajudar nas escalas. Precisaram adaptar questões legais em algumas organizações. Também foi preciso comunicar tudo isso aos funcionários, debater os modelos disponíveis e o grau da redução de horário, além da flexibilidade. Não existe apenas um modelo de semana de quatro dias e não devemos cair na armadilha de pensar que há uma maneira perfeita de fazer isso. Cada empresa tem requisitos e demandas diferentes, que precisam ser consideradas. E o que vimos é que muitas organizações adotaram uma abordagem flexível. Então, como mencionado, algumas reduziram apenas 10%, outras 20%, mas em alguns casos o dia de folga das pessoas mudou. Para alguns foi realmente a sexta-feira, então todos tinham um fim de semana maior. Outras empresas precisavam abrir na sexta, então tinham dias rotativos e cada funcionário folgava num dia diferente. Algumas disseram, “ok, você precisa trabalhar 36 horas e você distribui como quiser, então se quiser às vezes trabalhar no sábado pela manhã, você pode trabalhar menos durante a semana, certo?” Eram abordagens muito diferentes, e o que todos tinham em comum era que estavam reduzindo o tempo de trabalho e seguiam pagando o mesmo.
Você mencionou o uso de IA para reorganizar cronogramas. Foi essa a única forma de uso de IA nisso?
Não, eles usaram diferentes exemplos de como a IA poderia melhorar o trabalho ou os processos de trabalho. Muitas organizações realmente disseram que usariam alguma nova ferramenta digital ou testariam um novo sistema para apoiar melhores processos de trabalho ou mais eficiência. Cerca de 25% dos funcionários também disseram que usar uma nova ferramenta digital foi realmente útil para poder concluir o trabalho em menos horas. Mas o que fez mais diferença mesmo não foi a IA, foi as empresas tentarem reduzir pequenas interrupções, sabe? Eles analisaram com o que as pessoas passavam o tempo nos seus dias de trabalho e tentaram identificar onde estavam os gargalos –mensagens, reuniões, chamadas. Especialmente quem trabalha em escritório precisou reconsiderar muito da sua cultura de reuniões. Especialmente quando as pessoas ganham mais responsabilidades gerenciais, o tempo que passam em reuniões é imenso. Há muitos funcionários talentosos presos em reuniões todo dia, então eles tentaram identificar se é realmente necessário que todos estejam em cada reunião. Exigiram que sempre houvesse uma pauta específica para cada reunião, o que deveria ser evidente, mas sabemos que a maioria das reuniões não tem isso. Aí, só discutiam o que estava nessa pauta e nada mais. Alguns chegaram a pôr alguém com o cronômetro na mão para dizer “OK, agora só temos mais 10 minutos”. Alguns reduziram reuniões de uma hora para 15 minutos, para poderem usar um pouco de tempo para mudar de foco entre as tarefas. Alguns só tinham reuniões em uma certa parte do dia, digamos, de manhã, mas nunca à tarde, para poderem se concentrar em seu trabalho. Outras empresas também dividiram o tempo de trabalho em tempo de foco e tempo de colaboração, significando que há certas horas do dia em que as pessoas não devem ser interrompidas em seu trabalho, para poderem se concentrar em concluir as coisas. Ninguém podia se aproximar da mesa dos colegas. Mas certos momentos do dia eram dedicados à colaboração e interação. Chegaram a criar um sistema de semáforo: se o sinal estivesse vermelho, ninguém podia interromper.
Apenas reduzindo o tempo de trabalho o trabalho não muda. Você realmente precisa pensar e repensar como faz o seu trabalho. Isso realmente precisa ser visto como um projeto de mudança. E eu sempre alguém me pergunta: “tá, mas por que não reorganizar desse jeito sem reduzir as horas de trabalho se com 40 horas dava pra fazer muito mais?” O problema é que você precisa oferecer algo às pessoas para que adotem novos hábitos. Muitas das ideias de mudança para muitos casos vieram dos próprios funcionários. Eles identificaram como as coisas deveriam ser feitas melhor porque acharam a semana de quatro dias algo positivo. Ficaram empolgados com essa mudança e com isso ficaram super motivados para identificar questões que deveriam ser feitas de maneira diferente.
Você mencionou as reuniões e as ferramentas de comunicação, e a gente vê muito isso - as pessoas estão com a atenção fragmentada. Em que as pessoas tropeçam?
O problema é que há muita comunicação, Muitas empresas se comunicam demais com os funcionários, né? Há 25 anos atrás você basicamente só tinha seu telefone. Hoje em dia você recebe tantos e-mails, você recebe mensagens de texto, de áudio, chat, reuniões em vídeo, notificações quando alguém faz upload de um novo documento. A comunicação é constante. Algumas pessoas são realmente boas em bloquear isso, e outras se distraem facilmente. Às vezes, se você trabalha em tarefas altamente cognitivas, que exigem concentração, essa carga mental pesa muito. Às vezes é difícil se motivar para trabalhar por três, quatro horas seguidas numa tarefa imersiva. Então, todas aquelas pequenas perturbações, não são realmente úteis, mas as pessoas tendem a adiar a concentração para responder aqueles 10 e-mails que chegaram. Acho que esses são hábitos gerais hoje em dia por causa da comunicação excessiva que vemos.
Isso com certeza afeta desproporcionalmente os trabalhadores de escritório. E em outros setores?
O que eles fizeram foi realmente olhar para os processos que podiam mudar. Uma organização que identificou que desafios diferentes para adaptar quem trabalhava na produção, quem trabalhava nas vendas e quem trabalhava em escritório. As pessoas na equipe de vendas eram o maior gargalo para a semana de quatro dias, porque faltava pessoal para distribuir seu trabalho. Então, parte das pessoas da área de produção foram treinadas para ajudar nas vendas. Assim, eles puderam distribuir melhor para que todos pudessem ter a semana de quatro dias ou redução do tempo de trabalho. Veja, não é necessariamente uma grande mudança que todos fizeram para que isso acontecesse, mas muitas pequenas mudanças nos processos que realmente ajudaram a mudar e economizar tempo, Os funcionários ajudaram a identificar todas as pequenas ineficiências. Às vezes as pessoas na produção não viam seus colegas por vários dias porque uma pessoa importante tinha a sexta-feira de folga, outra folgava na segunda, então se encontravam na quinta e depois só na terça. Então, se algum assunto dependesse da equipe inteira, isso atrasaria todo o processo. Inicialmente, só conseguiram atender 70% ou 80% dos pedidos como antes. O que eles decidiram foi usar um sistema onde todas as chamadas abriam um ticket eletrônico e cada trabalhador da equipe documentava tudo nesse aplicativo. Nos primeiros três meses, tanto o faturamento quanto o lucro caíram. Depois de implementarem o novo sistema, as vendas e lucros estão melhores do que antes da semana de quatro dias. Não é simplesmente a redução, mas a reflexão sobre como fazer as coisas de maneira diferente e a motivação dos funcionários, trabalhadores para implementar isso e identificar ideias e fazer isso acontecer. Então, isso foi bem legal.
Seu estudo enfrentou resistência de indústrias, da imprensa, algo assim?
Claro! Alguns dizem, “veja, isso vai prejudicar a produtividade a longo prazo”. Também há quem diga “mas já faltam trabalhadores qualificados, se reduzirmos as horas de trabalho não teremos pessoal suficiente para lidar com o trabalho”. As pessoas temem que os custos sejam mais altos do que antes. Mas durante o estudo, as empresas compartilharam seus dados financeiros e de vendas conosco. O que pudemos ver é que, enquanto reduziram significativamente as horas de trabalho, o faturamento e o lucro aumentaram ligeiramente, mas não muito em comparação com o ano anterior. Permaneceram aproximadamente os mesmos com menos horas de trabalho, mas isso mostra que a produtividade aumentou: você reduziu as horas trabalhadas e o resultado ficou semelhante. Há um ganho de produtividade visível, mas ele não vem só da redução de horas. Vem de todos os pequenos aspectos que mencionei que as organizações fizeram além disso. E além disso as pessoas estão menos estressadas, estão fazendo mais esportes, estão dormindo um pouco mais a cada semana. E essas diferenças são significativas, em comparação com trabalhadores que continuaram na semana de cinco dias.
As empresas estudadas continuam na semana de quatro dias?
Três quartos mantiveram a semana de quatro dias, apenas 20% voltaram aos cinco dias. O combinado era que ficassem apenas pela fase de teste de seis meses, e se quisessem podiam manter depois. Algumas organizações decidiram ficar em definitivo com os quatro dias, outras acham que vão voltar mas não sabem quando e algumas resolveram por conta própria manter por mais seis meses a experiência.