Lagom Insights: Salários baixos, formação média
Marcelo Soares
Dois salários mínimos não pagam um aluguel de quitinete em São Paulo. Porém, mais da metade dos trabalhadores formalmente registrados, no Brasil, ganha menos do que isso: 56,6%, No caso de quem tem menos que o ensino médio completo, chega a quase três quartos dos trabalhadores formais.
Veja o gráfico abaixo, produzido a partir dos dados da RAIS, levantamento anual do Ministério do Trabalho sobre todos os empregos formalmente registrados no Brasil, independente do tempo de serviço. Cada barra é um passo na escolaridade. Cada cor é uma faixa de salário mínimo. O mais comum entre os trabalhadores do setor formal é ter o ensino médio completo.
Até aqui, você viu o tamanho das massas de trabalhadores. Agora, vamos ver de maneira diferente: o gráfico abaixo desconsidera o tamanho das populações de cada escolaridade, mostrando a proporção de cada faixa salarial dentro de cada escolaridade.
Ou seja, cada barra dá 100% daquela faixa de escolaridade. Sejam os 26 milhões de trabalhadores com ensino médio completo ou os menos de 200 mil trabalhadores de carteira assinada que têm doutorado.
Juntando quem terminou um curso superior ou foi além, com mestrado ou doutorado (menos de um quarto dos trabalhadores formais no país), um a cada cinco não ganha mais de dois salários mínimos, segundo a RAIS.
Se formos ver quais são as ocupações em que suas carteiras estão assinadas, entende-se o motivo. Doze ocupações concentram mais de um terço dos trabalhadores no setor formal que completaram ao menos uma graduação.
Anotações a partir dessa lista:
16% das vagas formais ocupadas por pessoas com curso superior são de professores do ensino fundamental e médio. É a profissão mais nobre, mas extremamente mal remunerada no Brasil.
11% das vagas formais ocupadas por pessoas com curso superior são administrativas, onde se concorre com pessoas que muitas vezes não têm o ensino médio completo. Os salários também são bastante baixos.
As vagas potencialmente mais bem pagas, dentre as mais comuns ocupadas por profissionais formados, são as de administrador e analista de sistemas.
Além de tudo, estamos olhando aqui apenas para o emprego formal, com carteira de trabalho assinada. Os dados do IBGE que captam o emprego informal não são representativos para quebrar por escolaridade.
Até 2019, quando entrou em vigor o sistema e-social, o Ministério do Trabalho utilizava uma categorização das ocupações do CBO por grau de qualificação. Ocupações militares e boa parte do serviço público não tinham grau de qualificação definido; profissões que dependem de formação superior têm grau 4; ocupações de nível médio ou técnico têm grau de qualificação 3; o restante é nível 2.
Assim se dividiam, por qualificação necessária e escolaridade efetiva do trabalhador, as vagas formais ocupadas no Brasil em 2022:
Para quem não teve privilégios de nascença, a escolaridade era a principal maneira para ter a chance de uma vida um pouco mais confortável. O problema é que as vagas que aparecem para serem ocupadas não são compatíveis com a especialização que se buscou, e isso tem tudo a ver com a estrutura da economia brasileira. O Brasil se desindustrializou e baseou sua pauta de exportações em commodities agrícolas e minerais. Os empregos urbanos se concentram no setor de serviços, e geralmente são malpagos.
Mesmo quem tem o ensino médio completo não consegue vagas que demandam qualificação média ou técnica. E a desigualdade se vai reproduzindo.
Um comentário muito comum entre economistas liberais diz respeito à baixa produtividade do Brasil. Trata-se de um cálculo bruto feito pela divisão do PIB pelo bolo das horas trabalhadas. Eles sempre falam do “custo Brasil”, dos impostos, do custo do transporte, e não raro até culpam a falta de qualificação de muitos trabalhadores, como se fosse uma falha moral individual das pessoas, mas raramente olham a qualidade do emprego gerado no país. Um auxiliar de escritório com ensino superior completo dificilmente produzirá muito mais nas mesmas horas de trabalho que um auxiliar de escritório que acabou o ensino médio.
(Pela própria definição do cálculo do PIB, é impossível crescer muito dependendo tanto de importar produtos industrializados, especialmente de alta tecnologia. A desindustrialização joga contra a produtividade nessas duas frentes: a da dependência de produtos externos e a da desqualificação da massa de trabalhadores.)
Isto tem muito a ver com diversos debates contemporâneos. Um deles é o do populismo: a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado tem relacionado as fraquezas do mercado de trabalho à vulnerabilidade de parcela da população a fantasias de dinheiro rápido, seja por via da religião ou da conversa de influenciadores que desejam vender feijões mágicos. Em livro recentemente publicado no Brasil, Paolo Demuru diz que os extremistas capturaram as pautas do trabalho e do desejo.
Por falar em feijões mágicos, outro dia minha mulher comentou em casa que a criançada que passa o dia vidrada no YouTube desde bebê dificilmente captaria sequer a referência da fábula de João e o Pé de Feijão. A desqualificação do trabalho já começa pela colonização do imaginário infantil pelos sonhos de consumo empurrados por influenciadores.
***
Os dados usados nesta análise foram produzidos usando o data lake da Lagom Data. Caso você queira encomendar outros recortes destes ou de outros dados, ou solicitar outros serviços da Lagom Data, entre em contato pelo e-mail lagom@lagomdata.com.br