Lagom Insights: "Conteúdo", uma commodity cognitiva
#“Conteúdo”, uma commodity cognitiva que se "consome"
por MARCELO SOARES
Esta edição expande ideias que alinhavei originalmente em fios do Bluesky.
Por três décadas, o nome do escritor Neil Gaiman, gravado em qualquer coisa, foi sinônimo de qualidade e vendas. Seu talento para a escrita, afiado produzindo quadrinhos cheios de referências mitológicas e obscuras, inspirou incontáveis edições especiais, coleções de bonecos e obras audiovisuais, além de incontáveis tatuagens e inícios e finais de relacionamentos entre seus fãs espalhados ao redor do mundo.
Em 2024, isso mudou. Acusações de abuso sexual contra Gaiman abalaram a imagem “cool” do autor. As situações mais repugnantes foram relatadas em reportagem de capa da revista “New York”. Aos fãs, restava uma questão: o que fazer com tudo o que se pensou e criou a partir da obra dele?
Situação complicada: é fácil se desinteressar por qualquer coisa nova que um autor vier a escrever, como sabe quem evitava ler opiniões de um grande escritor como Vargas-Llosa, recentemente morto. Mas é impossível desler o que foi lido e dispensar o que foi pensado, especialmente se tinha qualidades, se estimulou ideias, conversas, criações.
Nas redes sociais, onde as opiniões mais simplistas são as mais engajantes, há sempre pessoas com opiniões veementes sobre tudo, especialmente sobre a vida e hábitos alheios: “é muita vontade de consumir conteúdo de gente escrota”, escreveu alguém.
E aí, nesse juízo peremptório sobre o caráter de alguém desconhecido cujo pecado é ler, talvez haja uma chave para entender o ambiente atual de circulação de informação, cultura e ideias.
Apesar de continuarem existindo diferenças importantes entre os tipos de produção cultural, e o que é feito para ler vai saindo de moda, tudo hoje virou “conteúdo”.
E o que é esse tal de “conteúdo”?
É uma commodity cognitiva, em grande parte indiferenciada, por mais que tenha diferenças de formato, que economicamente vale mais pela quantidade do que pela qualidade. “Conteúdo” pode ter forma de texto, vídeo, áudio, imagem. O colunista Sérgio Rodrigues, uma das vozes que ainda vale a pena ler nos jornais, disse numa coluna que hoje em dia pra “produzir conteúdo” não precisa nem do que antigamente se chamava de “ter conteúdo”.
Na lógica do “conteúdo”, um meme com milhões de cliques vale mais do que a obra inteira de Shakespeare, pois circula mais e monetiza melhor.
Na última década e meia, com a ascensão das redes sociais, surgiram “fazendas de conteúdo”, que vivem de produzir “conteúdo” em amplas quantidades (o que não raro significa plagiar ou tirar de contexto o trabalho alheio), visando capturar o máximo possível de audiência e engajamento. Ferramentas como o Google Trends guiam esse tipo de produção - estão falando disso? Qual o jeito mais rápido de “entrar nisso” AGORA pra capturar esses cliques?
A ideologia do conteudismo cria formatos curiosos, como os já tradicionais memes, os podcasts de cinco horas (que permitem extrair pilhas e mais pilhas de “cortes”), os vídeos de “react” (em que as pessoas assistem a outras pessoas assistindo vídeos; alguns até são bons, quando quem assiste sendo filmado entende do assunto, mas isso não é a regra), no jornalismo os setoristas de rede social e nas redes sociais os “urgentinhos” do jornalismo.
As fabriquetas de conteúdo se financiam com publicidade e publicidade pede números grandes. Tanto faz se tem alguém do outro lado, o que importa é fazer número. Por isso, no ambiente digital, achou-se até um outro pulo do gato: o “conteúdo” para ser "consumido" não precisa nem de "consumidor", pois o critério de qualidade é o numerão. Boa parte dos sucessos dos serviços de streaming, especialmente de áudio, são impulsionados por robôs clicantes. Assim, são indicados e "consumidos".
E aí boa parte do que passa por “crítica cultural” hoje em dia é muitas vezes comparação de bilheteria e especulação sobre bilheteria. Porque isso também é “produção de conteúdo”, publicada em vídeo visando fazer números.
"As Marvels", um dos filmes de boneco mais divertidos que já vi, é considerado um "fiasco" porque foi mal na bilheteria depois de meses de especulações de que iria mal. Especulações estas fomentadas por todo um ecossistema de “canais de entretenimento”, que vivem de botar marmanjos jogando conversa fora sobre o sucesso ou fracasso de coisas que ainda sequer foram vistas, uma lógica que daria um nó na cabeça de Humberto Gessinger. O pop continua não poupando ninguém (e viva o papa pop que se foi).
“Conteúdo”, portanto, é algo que se “consome”, não se lê.
A relação de consumo entre pessoa e obra é completamente desconectada do juízo crítico a respeito. Usando o juízo crítico eu posso ler um texto e discordar dele, relacionar a outras ideias, usar até algo de que não goste como ponto de partida do meu raciocínio. Se estou "consumindo", não - quero que ELE concorde comigo, porque afinal sou eu que estou consumindo. É algo bem infantilizado.
Mais ainda: o “conteúdo” virou uma espécie de marcador de identidade. Os fãs de menudos coreanos (chamam de k-pop, mas os menudos têm há décadas essa mania de ficar mudando de nome) têm nessa “militância” de compartilhar, tocar, multiplicar, a coisa que julgam mais importante em sua vida. Eles se veem como uma espécie de servidores do sucesso dos ídolos que cantam e dançam em todas as suas telas.
Se tudo é “conteúdo”, tudo é feito para consumo. No ambiente digital, onde tudo é contabilizado e monetizado, os artistas são avaliados e monetizados pela quantidade de “conteúdo” que produzem.
O próprio Shakespeare, esse ultrapassado que continua atual há cinco séculos, publicou apenas 37 “conteúdos”, na forma de peças de teatro que andam por aí até hoje. Isso é tipo uma semana da vida de qualquer tiktoker, mas vá você lembrar o que eles conteudaram semana passada. Robert Johnson gravou só 42 “conteúdos” (28 canções e 14 takes extra de algumas delas) e sequer consta que criasse dancinhas para engajar.
Por sorte, Bill e Bob viveram antes da internet, porque nela o negócio é produtividade e não permanência. Dizem até que o velho Bill “inventou o humano”.
Aí vem o pulo do gato: a pesquisadora Kate Eichhorn observa que, como ninguém consegue produzir e publicar sua criação intelectual no ritmo desejado pelos “fandoms” digitais, a personalidade de quem produz esse “conteúdo” também acaba virando “conteúdo” - não fiz música nova hoje, mas olha como é fofo meu cachorro. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que não era nem um pouco bobo, sacou há quase 20 anos que essa mercantilização da vida vinha rolando, mas ele via isso do ponto de vista dos consumidores que se sentiam “obrigados” a atualizar seus guarda-roupas para não serem vistos como desatualizados.
No momento em que a própria vida vira “conteúdo”, o público digitalizado, onipresente e com ilusão de proximidade trazida pelas redes sociais passa a demandar “novas coleções” com mais frequência do que a mudança das estações.
Do viver para consumir, passou-se a consumir a vida.
No ambiente digital, nada é mais importante do que a personalidade - a própria e a dos “produtores de conteúdo”, que na prática qualquer um acaba sendo (inclusive quem escreve fios e uma edição de newsletter para argumentar contra a lógica do “conteúdo”).
Daí é que os detalhes absolutamente vis da vida pessoal dos atores Johnny Depp e Amber Heard se tornaram quase tão populares quanto qualquer filme que fizeram, durante os longos meses que durou seu processo de divórcio.
Quando eu era editor de audiência da “Folha de S.Paulo”, o jogador Neymar rendia mais notícias (e cliques) na editoria de “entretenimento”, com as reviravoltas de sua vida pessoal, do que na de esportes, com sua carreira nos campos.
Os piores momentos da vida alheia acabam virando entretenimento nas redes. O modelo de negócio delas depende de conteúdo em abundância, 24 horas por dia. Para explorar esse aspecto econômico, foram criados sites sensacionalistas que industrializaram a fofoca com fins de lucro.
E a vida alheia por acaso é diversão? Deveria ser entretenimento de alguém?
E nem é só a vida dos altamente famosos, que jogam na Seleção ou estreiam filmes. Para garantir um fluxo de “conteúdo” commoditizável, surge a demanda de uma criação industrial de novas personalidades. Basta abrir as editorias de “entretenimento” de qualquer site de notícias para ficar sabendo detalhes íntimos da vida de famosos de quem você nunca ouviu falar, e que no entanto são acompanhados por milhões.
Os reality shows foram o primeiro pulo do gato - era possível ser um astro da TV sem precisar saber atuar ou mesmo sem a emissora precisar gastar fortunas com roteiro, cenários, locações e efeitos especiais; bastava uma casa, uma piscina, uns corpos mais ou menos atraentes e algum álcool. Mais recentemente, com as redes sociais, veio uma profusão de “influenciadores” – basicamente, gente cujo grande talento é a simpatia. Pessoas com talentos preexistentes, incluindo quadrinistas como Gaiman, acabaram surfando a onda, pois todo mundo anda em maior ou menor medida matando cachorro a grito na internet.
Eu já lia gibi quando Gaiman estourou. Tudo o que o leitor sabia dele no começo dos anos 90 era que usava roupa preta e gostava de livros velhos. O que se conhecia mesmo era o trabalho dele, publicado mensalmente em papel jornal colorido e grampeado com um aroma inconfundível.
"Consumir conteúdo de gente ruim" não era uma questão; ninguém se supunha próximo o bastante para saber se ele é uma boa ou má pessoa. Sabia-se o que ele escrevia, e que isso trazia alta qualidade a um gênero baseado em brucutus de cueca para fora da calça trocando sopapos. A vida do autor não era da conta de ninguém. Seus personagens eram o centro da admiração, e de vez em quando ele criava horas de filas na Fnac de Pinheiros, hoje tão extinta quanto a boa reputação de Gaiman.
Parte do tamanho da decepção das redes com Gaiman é decorrente do fato de que ele entrou nessa lógica de “conteudizar” sua personalidade. Mas por bastante tempo ele surfou nessa onda com destreza e projeção. Até a véspera de as denúncias virem a público, ele ia às redes como um cara sensato, “feministo”, pró-diversidade. Sua ex, Amanda Palmer, era craque em capturar atenção com a própria vida; ele, que já não era pouco vaidoso, aprendeu uns truques.
É positivo que abusos de um autor sejam levados a público e às cortes, mas a apreciação crítica da obra costumava ocorrer à parte. A curiosidade pelo autor vinha depois de conhecer a obra. As redes sociais inverteram isso: a personalidade vem primeiro, e aí não tem obra que resista.
Sabendo os podres do autor, um leitor pode até avaliar coisas com outros olhos –o rapto de Calíope é imaginação, tara ou confissão? Antes, parecia só ficção, mas as características que tinha como obra seguem lá. Estranho a lógica de que “consumir conteúdo de gente ruim”, ou boa, defina a identidade de alguém. Exceto se o consumo daquela personalidade definir essa identidade. E como alguém que foi criado consumindo vidas vai supor possível o hábito da leitura crítica?
Quando penso em consumo, a ideia me remete a comida e bebida; consumir a vida de alguém me parece uma lógica bem cruel. E no final acaba sendo isso mesmo: Gaiman foi tão “consumido” que acabou expondo todo seu “conteúdo” a ser expelido pela descarga cultural.
Enquanto não se deixar de “consumir” para finalmente voltar a ler, esse processo deve apenas se acentuar.

“Content”, de Kate Eichhorn. Foi um dos livros mais esclarecedores que li no ano passado. A autora analisa a noção de "conteúdo" e como ela se desenvolveu como modelo de negócio na internet, mas especialmente mergulha nas implicações sociológicas e filosóficas disso.
“Invisible Rulers“, de Renèe DiResta. Outro livro absolutamente esclarecedor sobre as dinâmicas da influência e desinformação em redes sociais. Como é que um modesto professor de guitarra acaba virando um ideólogo fascista? Ela explica. Desde a capa e ao longo do livro, ela repete algumas vezes a frase “if you make it trend, you make it true” (se você fizer bombar, vira verdade). Tem descrição melhor da ideologia do conteudismo do que isso?
Nenhum destes foi publicado no Brasil e não faço a menor ideia sobre se um dia será —eu adoraria traduzir o da DiResta se um dia for sair por aqui. Se você se interessa profissionalmente ou academicamente pelo assunto, são cruciais e vale ler em inglês.
Mas toma um que saiu aqui:
“Grande Hotel Abismo“, de Stuart Jeffries. Em março, fez 30 anos que eu entrei na faculdade de jornalismo. Resolvi ler direito algumas coisas a que não prestei a devida atenção aos 18 anos. Um caso é o da Escola de Frankfurt, cujas ideias foram descritas nas aulas da querida professora Christa Berger. Jeffries conta, de maneira muito cativante, a história da vida e das ideias de Adorno, Benjamin, Marcuse, Habermas e seus colegas. Algumas dessas ideias têm se revelado tristemente atuais.