Lagom Insights: contando direito uma história antiga
Há cinco anos, como surgiram os dados da Covid-19?
por MARCELO SOARES
Trabalhar de maneira independente é uma delícia, não se enganem. Mas tem alguns percalços. Um deles é a falta de crédito pelas coisas legais que você fez.
Neste domingo, o jornal Folha de S.Paulo contou a história do consórcio de veículos de imprensa, um ajuntamento de firmas grandes de notícia que começou a coletar os dados de Covid junto às secretarias de saúde no começo de junho de 2020, quando o então presidente negacionista resolveu promover um apagão dos dados.
Pelo relato do jornal, a ideia genial e originalíssima veio do diretor de redação do jornal:
“Na manhã de sábado, dia 6 de junho, horas depois da fala de Bolsonaro, o diretor de Redação da Folha, Sérgio Dávila, teve a ideia de formar uma parceria de veículos dedicados ao jornalismo profissional para buscar as informações necessárias nas secretarias de Saúde dos 26 estados e do Distrito Federal.
Dávila enviou mensagens a executivos de outros órgãos de imprensa, que foram receptivos à sugestão. No final da tarde do mesmo dia, o consórcio estava formado.
As editorias de dados dos veículos foram, então, incumbidas de organizar a coleta de dados. No caso da Folha, a operação foi coordenada pelo jornalista Fábio Takahashi.”
Por mais de dois anos a seguir, os dados de Covid citados pela grande imprensa eram sempre atribuídos ao consórcio. A iniciativa foi louvada e premiada como inovadora.
Só que nada disso começou ali. A coleta de dados em si já era feita por iniciativas independentes desde março, e as redações tanto sabiam que usavam as iniciativas como fonte. A única novidade foram os concorrentes se juntando.
Em março de 2020, a Lagom Data começou a fazer e publicar nas redes sociais seu primeiro levantamento de dados sobre a pandemia. Os dados eram publicados no Twitter toda noite, depois que as secretarias de saúde faziam seus informes.
Inicialmente, eu buscava os dados por Estado, no portal de transparência aberto pelo governo federal. Ele só informava os dados por Estado. Era pouco e era atrasado. Lá por 8 de março, eu comecei a entrar nos sites de cada secretaria estadual de saúde para coletar as informações desagregadas por município, algo que não havia no site federal até maio.

Isso levou alguns amigos jornalistas, como a Vera Magalhães, a elogiarem o trabalho como “mais atualizado” do que os dados oficiais. Eu ficava sem jeito com a generosidade do comentário, mas explicava que não era bem assim: eu usava dados oficiais, só que dos Estados. O governo federal é que estava com dados atrasados.
Tenho um orgulho imenso do trabalho que fiz nessa época. Tive reconhecimento de pessoas que respeito, aprendi alguns truques a mais pra trabalhar com dados muito maiores e frequentes do que costumava trabalhar, ganhei até um prêmio. Falo pouco do assunto porque 1) já faz tempo, 2) tomei um fartão de pandemia trabalhando quase só com isso todo dia por mais de dois anos e 3) tem muito mais coisas pra fazer. Mas queria um dia contar minha versão em algum lugar, e o melhor lugar possível é esta newsletter.
Eu fazia esse levantamento sozinho, toda noite, sem qualquer recurso além da minha vontade de entender os padrões da pandemia que trancou o mundo em casa. Não havia qualquer financiamento. No começo, levava 15 minutos; por maio, levava mais de uma hora. Por essa época, abri um Catarse e também acabei recebendo ajuda de dois estudantes que tinham feito o Repórter do Futuro (um deles hoje trabalha na Folha). Fiz porque achava que era a coisa certa que eu podia fazer.
No começo, cada Estado apresentava os dados do jeito como dava na telha da pessoa incumbida de dar publicidade a eles, e isso aumentava o esforço necessário. Ao me ver toureando fontes de dados tão díspares todo dia, minha mulher, Fernanda Campagnucci, então diretora da Open Knowledge Brasil, viu nessa diversidade de formatos um problema interessante, e a organização passou a fazer um Índice de Transparência de Dados da Covid-19. Quando alguns Estados viram que apareciam mal no ranking da forma de publicação dos dados, os governadores mandavam melhorar isso daí pra subir no ranking. Com isso, a rotina noturna que me impus também ficava um pouco menos dura.
Pouco depois do meu levantamento ter começado, talvez pelo começo de abril, o Brasil.IO, do gigante Turicas, começou a fazer levantamento semelhante usando um grupo de voluntários. Sempre achei excelente que mais gente tivesse interesse em fazer a mesma coisa. Vai que um dia eu pegasse Covid e capotasse (ao menos conscientemente, nunca peguei).
As empresas jornalísticas conheciam as duas iniciativas, tanto que as usavam como fonte. Naqueles primeiros meses da Covid, todo dia o telefone tocava com consultas de repórteres. Em certo ponto de abril ou maio, algum repórter de O Globo me ligou perguntando se eu topava licenciar o levantamento para eles. Falei que podia conversar, pois esse levantamento tomava um tempo razoável e não tinha qualquer financiamento.
Enfim. A conversa não andou.
Em 5 de junho de 2020, o então presidente mandou bloquear a publicação de dados diários. “Acabou notícia no Jornal Nacional”, disse. No dia seguinte, o diretor da Folha fez a articulação com os outros chefes de grandes jornais e na segunda-feira surgiu o consórcio.
Na mesma segunda, 8 de junho, meu telefone começou a tocar me convidando para fazer colaborações com a grande imprensa. Até então, mesmo tendo trabalhado nessas empresas anteriormente, elas usavam meu trabalho apenas como fonte.
A Folha queria que eu escrevesse uma análise em cima de um gráfico que eu havia feito para o The Brazilian Report e publicado nas minhas redes sociais, onde eu procurava identificar subnotificação nas capitais. (Leia o texto original, que explica melhor.) Ofereceram um valor baixo pela colaboração, que eu topei depois de tentar aumentar, mas nunca pagaram até hoje.
Como era aviltantemente pouco, nunca nem me dei ao trabalho de cobrar. Apenas dei por encerrada minha relação profissional com a empresa, que teve excelentes fases no passado. Nunca mais os procurei, eles nunca mais me procuraram e a vida seguiu. Continuei assinante até eles publicarem um anúncio dos cloroquiners, em março de 2021. Aí forçou demais a amizade e eu cancelei minha assinatura. Desde então, tive muitos novos motivos para cancelar a assinatura, mas não tenho mais como.
No mesmo dia em que saiu a reportagem da Folha, o Jornal Nacional me convidou para dar uma entrevista sobre a análise. Foi uma alegria, muito mais gente conheceu meu trabalho.
No dia seguinte, O Globo me pediu uma outra análise sobre a subnotificação, para a qual usei os dados do Sivep-Gripe. Não apenas ofereceram mais do que o dobro da merreca que a Folha tinha oferecido como também até pagaram. Deu capa e até uma materiazinha de bastidores. No mês seguinte, fiz uma colaboração com a revista Época, que foi premiada.
Naquela semana de junho, há cinco anos, achei que finalmente o meu trabalho com os dados da Covid-19 estava sendo reconhecido depois de três meses de esforço individual. Estava redondamente enganado.
Hoje, com distanciamento de cinco anos, minha avaliação é de que na verdade os ex-colegas que me conhecem há décadas nas duas empresas queriam me dar um prêmio de consolação pelo crédito que meu trabalho com aquela coleta de dados nunca mais receberia. Dava pra ter feito de outro jeito; nem eles devem ter clareza de por que não o fizeram.
Da minha parte, nada mudou: continuo procurando pouco os meus amigos, como de costume, mas gosto das pessoas de quem tenho boas lembranças. (Às vezes evito abrir links pra não precisar ver a assinatura.) Sempre que faço críticas ao jornal, evito criticar quem apenas trabalha lá, honestamente e com cada vez mais dificuldades de condições de trabalho.
Subnoticiando a subnotificação
O consórcio de veículos de imprensa teve a grande virtude de fazer um governo negacionista voltar atrás na ideia de censurar os dados. Foi um posicionamento político das empresas, que deu certo e barrou retrocessos.
Acontece que, como eu analisei na minha dissertação de mestrado, essa coleta de dados feita como posicionamento político acabou por estagnar o questionamento dos próprios dados. Até junho de 2020, quando a fonte dos dados era o governo, havia relativamente bastante cobertura tentando identificar subnotificação dos dados - quase um texto por dia, em média. Era um problema e continuou sendo até o final da pandemia. Mas deixou de ser assunto do noticiário após a criação do consórcio.

Lógico: a partir do momento em que o veículo de imprensa se apresenta como portador de dados mais confiáveis que os do governo, colocar em questão o quanto eles estão ou não completos parece colocar em questão a própria credibilidade. Mas o fato é que eles trabalhavam com dados oficiais, coletados junto às secretarias de saúde. Apenas os apresentavam como próprios e mais corretos do que os oficiais. Essa foi a versão que ficou.
Como eu acompanhava todos os dias o que faziam as secretarias de saúde, eu sabia que cada uma tinha critérios diferentes, e potencialmente cada município e cada hospital também poderia ter critérios diferentes do que contar como Covid-19.
Se formos olhar o quanto esses parcos textos que citavam subnotificação foram compartilhados, a coisa fica ainda mais gritante:

Todo dia, a Folha (e outros jornais) publicava um texto razoavelmente padronizado atualizando os números. Em uma semana de março, todos os textos citaram subnotificação. A partir do meio de junho, a palavra quase desapareceu desses textos. No gráfico abaixo, cada barra é uma semana.

Como resultado, a ideia de subnotificação sumiu até da curiosidade do público, observada pela proxy das buscas no Google via Google Trends. Até junho, as tendências relativas de buscas por “dados de Covid” e “subnotificação” eram bastante semelhantes. A partir dali, elas descolam.

Enfim: se de um lado a criação do consórcio teve sucesso ao pressionar o governo a voltar a publicar os dados (e voltou rapidamente), por outro ela bagunçou o ambiente da compreensão da subnotificação. Que continuou ocorrendo e tendo incentivo para ocorrer. Saíram ótimos estudos epidemiológicos sobre isso desde 2022.
Infelizmente não dá pra contar com a grande imprensa pra contar essa história direito, então contei aqui do jeito que eu acompanhei na época. Certamente há outras versões.

“Susan Sontag: a entrevista completa para a revista Rolling Stone”. Trata-se da transcrição de 12 horas de conversa entre uma das intelectuais mais interessantes do século 20 e um ex-aluno seu, Jonathan Cott, na época editor da revista Rolling Stone na Europa. Um terço do conteúdo havia sido publicado na revista em 1979, e a íntegra só saiu recentemente, Segundo Cott, sua mestra “não falava por meio de frases, mas de parágrafos extensos e bem planejados”. Ler esse bate-papo é quase se sentir na sala da casa dela, rodeada por estantes com oito mil livros.