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Julho 1, 2025

Insights: vídeos por IA são inevitáveis na comunicação política?

Tecnodeterminismo, culto à carga e o momento Marisa Maiô do PT

por MARCELO SOARES

Pois não é que o partido do presidente Lula pegou a mania de fazer vídeos por IA? O último é sobre a taxação das bets, bilionários e bancos. A estética não é muito diferente da usada pelo governo Trump, ou pelos bolsonaristas, ou pelos evangélicos. Fica tudo meio com jeito de uma charge ruim, cheia de legendas para explicar o que alegoriza o quê, encenada num videogame.

Credo. O tema é importante demais, urgente demais, pra ser tratado com essa leviandade. Especialmente usando essa que Gareth Watkins chama de “A Nova Estética do Fascismo”.

Post real da verdadeira conta do X do Department for Homeland Security, criado por IA, mostra jacarés usando bonés do departamento de repressão a imigrantes em situação irregular

Às inevitáveis críticas nas redes sociais, militantes respondem que é chato, mas é assim mesmo que tem que ser. Afinal, “o público quer” vídeos feitos por IA, ou não faria tanto sucesso a Marisa Maiô, personagem criado por gerador de lero-lero que imita programas de barraco na TV aberta.

Calma lá. O tecnodeterminismo, empurrado pelas big techs e seus acólitos nas redes sociais, sempre busca vender seus produtos como inevitáveis, invertendo a relação de causalidade. As pessoas gostam de vídeos por IA ou as pessoas usam IA para produzir de maneira barata vídeos sobre assuntos de interesse? Eu tendo a pensar que é este o sentido mais razoável da causação.

Nos anos 90, no Rio Grande do Sul, contava-se a seguinte piada: o primeiro prefeito eleito num município recém-emancipado toma posse e, como primeiro ato de sua gestão, vai à praça central para queimar uma pilha de pneus. Questionado por eleitores, diz: “prometi transformar este novo município numa cidade grande, e toda cidade grande tem poluição; começamos hoje a jornada rumo ao progresso”.

É lógico que a poluição não traz por si o progresso, e mais recentemente a experiência de cidades muito desenvolvidas no exterior demonstra que sequer a poluição é presença imprescindível num lugar desenvolvido. Mas a piada ilustra uma ilusão que se repete no mundo digital: a de que certos desconfortos seriam “inevitáveis”, ou que certos rituais imitativos são necessários para atrair as benesses do deus algoritmo, ecoando o que se fazia no culto à carga de tribos do Pacífico do século 20.

Tudo bem que eu mesmo já escrevi que estamos na era da pós-vergonha, mas também não é pra tanto.

Quem quer ouvir jazz falso?

Há algum tempo, começaram a aparecer, em playlists populares do Spotify, músicas de jazz bastante genéricas, atribuídas a artistas desconhecidos. Essas músicas se tornaram bastante ouvidas, mais do que as de muitos artistas de verdade. O Ted Gioia resume o caso: para se apropriar de níqueis que, de outra maneira, teriam de ser pagos a artistas, a plataforma encomendou faixas genéricas e as incluiu em playlists tipo “Jazz para Relaxar”, coisas que as pessoas botam pra tocar mais para criar um certo ambiente do que por gostar. Coisas para ouvir sem prestar atenção.

Mas os supostos artistas “Trumpet Bumblefig” e “Bumble Mistywill” não são muito ouvidos por terem uma grande base de fãs, nem provam que “as pessoas gostam de música criada por IA”. Foram ouvidos por terem sido empurrados matreiramente a quem estava buscando outra coisa, tipo música instrumental pouco invasiva para não prestar atenção enquanto alguém tenta prestar atenção em outra coisa. (Pessoalmente, não entendo a lógica da música ambiente - gosto tanto de música que não consigo conceber escutar sem intencionalidade.)

Da mesma maneira, a maior parte do sucesso da personagem Marisa Maiô provavelmente se deve menos a ter sido feita por IA do que por fazer uma paródia de programas de auditório toscos. Os seus esquetes, a que não assisti por pura falta de interesse, provavelmente poderiam ter sido feitos por atores de verdade, num cenário de verdade, que cairiam igualmente nas graças do público. A única diferença é que seria mais caro para quem produz.

Falei sobre a lógica commoditizada do “conteúdo” na edição de 22 de abril: “Conteúdo, uma commodity cognitiva”.

O “problema de comunicação do governo”

Um tema frequente das críticas ao governo Lula na imprensa são os tais “problemas de comunicação”. O governo, dizem, precisaria aprender a usar as redes sociais como faz a oposição.

O problema é que isso não é uma questão meramente de técnica. Não se trata de apertar este ou aquele botão, e sobretudo não se trata de saber manejar uma máquina de encher linguística com a destreza do Kiko do Foguete (credo).

A maioria do apelo da extrema-direita nas redes vem do abuso do senso comum, do escárnio com adversários, do descaso com os fatos (vídeos feitos por IA facilitam esse descaso), do personalismo e das relações parassociais, que dão a ilusão de amizade direta com o público.

Nada disso é cabível na comunicação de governo. No caso do personalismo, é incabível por lei, inclusive.

Ao mesmo tempo, tudo isso facilita a multiplicação de “conteúdo” nas redes que se tornaram o principal meio de informação de uma fatia crescente da população. Ele é multiplicado com mais força pelos tais influenciadores, que são pessoas cujo grande talento é a simpatia, por mais odiosas que sejam as coisas que estejam dizendo.

A bancada do tiktok é imensa na Câmara, especialmente na oposição. Desde 2019, é mais fácil ver os deputados especialmente do “Centrão” conversando com telas de celular do que com seus colegas, inclusive do mesmo partido.

Por outro lado, o maior sucesso da comunicação de alguém da esquerda nos últimos anos foram os vídeos em que um ex-balconista de farmácia comentava com muita espontaneidade o quanto é injusto dedicar seis dias da semana ao trabalho e só ter um para folgar. Embora a mensagem do Rick Azevedo tenha se nacionalizado a partir da colaboração da deputada Erika Hilton, foi assim que começou o Vida Além do Trabalho. E a mensagem ressoou tanto que eleitores de partidos de direita convenceram seus representantes a não se colocarem contra publicamente. (Apoiar é outra questão.)

O "problema de comunicação" do governo não muda trocando o técnico, ou ao menos não só. O "problema de comunicação" do governo não se resolve "usando a tecnologia como faz a direita", especialmente porque governo não tem nada que fazer deepfake e espalhar mentiras. (O certo era ninguém fazer. Mas governo além do certo tem obrigações, ao contrário de flibusteiros digitais.)

Quando um governo trabalha sério, a maioria dos assuntos é inerentemente chata. Lembra o
Alckmin da Piauí falando com entusiasmo sobre a política nacional da palha de babaçu. Quando governo faz um troço entusiástico sobre seu trabalho, soa também tão atabalhoado quanto o Alckmin da Piauí usando gírias de moleque. E, lógico, vídeos de pronunciamento em lugar solene ou altamente produzidos destoam muito da comunicação em tom calculadamente espontâneo que faz sucesso nas redes sociais.

Como escreveu o querido amigo Fábio Vasconcellos: parecemos estar nos encaminhando para um cenário em que “um cenário em que a avaliação positiva de governos (não apenas este) tenderá a andar sobre uma fina camada de gelo, enquanto avaliações negativas surfarão no fluxo e na velocidade das redes”.

Mas, então, o que o governo, e o seu partido, deveriam fazer? Tem um monte de gente chutando, não vou engrossar esse coro. O governo dispõe de bons profissionais contratados especificamente para isso.

Sendo público de comunicação política, interessado em temas de política pública e com um certo conhecimento do ambiente digital, minha única recomendação é a de evitar o culto à carga de achar que algumas modernices digitais são “inevitáveis”.

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Qualquer livro que você comprar a partir dos links nesta seção me traz uma pequena comissão. Só indico o que acho importante. Se for em inglês, é porque ao menos ainda não saiu aqui.

“A Razão Desumana: cultura e informação na era da desinformação inculta (e sedutora)”, de Eugênio Bucci

O professor Eugênio Bucci, da USP, é um dos pensadores mais cristalinos do ambiente de comunicação brasileiro. Tão prolífico que acaba de lançar dois livros, este e “Que Não Se Repita”, reunião de crônicas que escreveu para o Estadão durante o longo “golpe em gerúndio” do governo anterior. Tive a alegria de buscar autógrafos em ambos na semana passada. “A Razão Desumana” é feito de palestras suas, editadas e atualizadas. Aqui, ele atualiza os raciocínios que já vinha fazendo em suas obras recentes, “A Superindústria do Imaginário”, “Existe Democracia Sem Verdade Factual?” e “Incerteza, um Ensaio”. Esses ensaios refletem sobre os mesmos temas de que estou tratando aqui nesta newsletter, especialmente nesta edição. Com certeza, parte do raciocínio que desenvolvi aqui tem ecos dos artigos desse livro, que li nos últimos dias.

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