Insights: O fim da 6x1 aumenta a produtividade?
por MARCELO SOARES
A pedido da CartaCapital, fiz uma análise do que os dados da RAIS dizem sobre o perfil das pessoas que trabalham em escala 6×1. São 32 milhões de trabalhadores, ou dois terços dos contratos formais.
Contratos 6x1: a cara do Brasil que trabalha demais e ganha de menos – Sociedade – CartaCapital
Ao menos dois terços dos empregados formais no País estão submetidos a seis dias semanais de trabalho, muitas vezes com salários que não ultrapassam dois mínimos mensais
Lá no finalzinho do texto, faço algumas considerações sobre produtividade, que eu queria expandir aqui.
Um dos mitos do debate econômico no Brasil é o que culpa os trabalhadores pelo baixo índice de produtividade no país. A baixa escolarização, dizem os economistas liberais, faz com que seja preciso quatro trabalhadores brasileiros para produzir o mesmo que um dos Estados Unidos.
Só que não é bem assim. Da maneira como o debate é conduzido, ele oculta a forma simples como é calculada a produtividade: o total do PIB dividido pelo total de horas trabalhadas no país. Isso faz com que o cálculo dependa muito mais da estrutura da economia e do mercado de trabalho do país do que das características individuais dos trabalhadores.
Desde os anos 90, o Brasil passou a importar cada vez mais os produtos consumidos no país - especialmente os de maior valor agregado. Com mais concorrência do exterior, a indústria brasileira encolheu em participação na economia. No mesmo período, o país também focou a economia na exportação de commodities, produtos básicos de baixo valor agregado, e no caso dos produtos agrícolas como a soja a mecanização da lavoura permitiu saltos de produtividade ao trocar trabalhadores por máquinas cada vez mais autônomas.
Com isso, na prática, o Brasil vende minério de ferro e compra smartphones, para simplificar o raciocínio. Uma tonelada de minério custa US$ 102, ou quase R$ 600. Uma tonelada de minério que o Brasil exporta traz mais ou menos o mesmo preço que o Brasil paga para importar um só aparelho Android de boa qualidade, antes dos impostos e margem de lucro. Em 2023, o Brasil exportou 23 milhões de toneladas de minério de ferro e os brasileiros compraram quase 40 milhões de smartphones.
Em 2016, eu e o meu mestre Mario Kanno produzimos um especial para o Guia do Estudante: Atualidades, mostrando esses padrões. O material ficou tão bonito (graças ao Kanno) que chegou a ser exposto na Bienal de Artes Gráficas de 2017.
Destrinchando: Comércio mundial e o Brasil | Curso Enem Play | Guia do Estudante
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O cálculo do PIB de cada país subtrai o valor das importações e soma o das exportações, e o saldo disso é a famosa balança comercial. Na prática, quando se compra um smartphone feito na China, boa parte do valor pago aumenta o PIB chinês e reduz o brasileiro. Países industrializados que terceirizaram as cadeias de produção para a China, caso dos Estados Unidos, também aumentam indiretamente seu PIB ao receber pela propriedade intelectual de um aparelho comprado no Brasil.
Com isso, no cálculo bruto da produtividade dividindo o PIB total pelo total de horas trabalhadas conhecidas, a produtividade dos países industrializados fica sempre mais favorável do que a nossa, sem que qualquer trabalhador brasileiro tenha qualquer coisa a ver com isso, exceto na condição de consumidor (aumentando a produtividade desses países mais ricos).
O nó da produtividade está também nos tipos de emprego que o Brasil gera; falamos disso na newsletter anterior. Se o Brasil tivesse mais indústrias de ponta, com excedente suficiente e desejável o bastante para exportar pelo mundo, os trabalhadores do comércio de outros países ajudariam a aumentar o PIB brasileiro durante seu expediente. Por aqui, seriam gerados empregos mais qualificados para mais pessoas. Não foi por esse caminho que os últimos 30 anos nos levaram.
A quantidade de trabalhadores e horas de trabalho envolvidas para exportar 23 milhões de toneladas de minério de ferro é muito inferior à quantidade de trabalhadores e horas de trabalho envolvidos para vender 40 milhões de smartphones nas lojas. Já a quantidade de trabalhadores e horas de trabalho necessários para produzir muitos milhões de smartphones na China deve ficar em algum lugar no meio do caminho, mas faz o mundo inteiro aumentar o PIB chinês.
Como a maior parte dos empregos no Brasil está nos serviços e comércio, onde se trabalha muitas horas com baixos salários, é difícil pensar num aumento da produtividade medida da maneira internacionalmente convencionada. Uma balconista ou caixa de supermercado só consegue vender até o limite do poder de compra dos consumidores. Professores de escola pública, outra ocupação numerosa, não vendem nada; no máximo bolo de pote para complementar a renda.
Não se trata necessariamente de um problema na escolaridade, como quer fazer parecer o debate raso brasileiro: uma moça formada numa universidade que só conseguiu emprego como balconista ou operadora de telemarketing dificilmente conseguirá vender mais do que sua colega que não conseguiu ir além do ensino médio. A colega dificilmente terá tempo, dinheiro ou espaço mental para avançar nos estudos. Ambas lamentarão juntas pelo mês que resta após o fim do salário.
Com a possibilidade do uso de IA para substituir o trabalho humano em cada vez mais ocupações de baixa complexidade (que, repito, são a maioria) isso tende a se agravar. Não apenas a tecnologia tende a ser baseada em serviços importados, o que reduz o PIB, como também pode reduzir a quantidade de gente trabalhando. O ganho de produtividade que o Brasil vai gerar para o exterior será potencialmente maior do que o que vai perder de mercado consumidor interno por meio do desemprego.
Assim, se formos pensar a questão da escala 6×1 pelo ponto de vista estrito da produtividade, um dos indicadores econômicos mais queridos pelos economistas liberais, reduzir as horas trabalhadas por semana pode ter o efeito inclusive de aumentar o índice brasileiro de produtividade, ao reduzir o denominador da fração. Claro, será preciso reorganizar escalas de trabalho para continuar fazendo o mesmo ou mais, mas trabalhadores mais descansados tendem a render mais.
VALE LER
Claudia Goldin, “Carreira e Família”.
A economista, que ganhou o Nobel Memorial de Economia no ano passado por suas pesquisas sobre o trabalho da mulher, traz alguns dos melhores argumentos para acabar com a escala 6x1: a divisão dos necessários cuidados da família acaba caindo muito mais sobre o ombro das mulheres. É mais do que a “dupla jornada”, são o que ela chama de “empregos gananciosos”.
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