Zuihitsu da solidão
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Quanto mais sofro pelas condições mundanas, mais me percebo necessitado do mundano. Quando quis me afastar desse mundo de pedra e ruído — meu berço —, me reencontrei mais citadino que nunca. Hoje, num quarto de apartamento, sozinho e respirando as cinzas dos meus projetos bucólicos (burgueso-bucólicos), não tensiono nem me ressinto: apenas observo e me abro à sensação quase prazerosa de apenas ser levado pelo mundo, num toque de humildade em finalmente consentir que o substrato dos grandes sonhos ainda é produto do ego. Sem complacência e sem niilismo: fraco ou forte, me lanço às condições adversas do mundo, agudizando a consciência ao ponto que clama: viver é estar em relação ao mundo.
O sujeito que exalta o humano antes da própria vida deposita sua fé numa armadilha. Não confio na minha espécie, sobretudo nos jovens da minha espécie e, com mais enfoque: no jovem burguês do meu tempo. Só elogio o bicho humano, em sua totalidade, quando este está em total relação com a vida, mais do que com seus propósitos mesquinhos e fechados à própria consciência e à própria carne.
Vou ao supermercado — e não há lugar mais humanocentrado do que estar num corredor de supermercado. Não há vez em que eu estenda a mão para um produto na prateleira, revestido em embalagem plástica, mais um produto seriado entre milhões neste mês, e não pense na catástrofe do mundo natural, a ruína da nossa casa — uma ruína que já habitamos (ainda não seu fundo) e nem percebemos.
Minha repetição, obsessão, neurose sistêmica: tão avançada e radical que se tornou abrangência de visão e lucidez, mesmo em sua dinâmica de peso e retorno ao mesmíssimo ponto: saco um produto da gôndola (na sociedade de mercado, gesto mais mecânico e reconfortante de todos), e me lembro, como lâmina que rasga a pele, da bancarrota da biosfera, do desespero de todas as suas crias, incluindo nós, ainda que não pareça, pois estamos com os carrinhos abarrotados e caras de paisagem na fila do supermercado.
Uma vez um morador de rua me disse que o grande drama não era a iminência do fim do mundo, mas não perceber que o mundo já acabou. Embora sagaz e fortíssima, a fala daquele homem roto não me gerou confiança. Ainda estamos na iminência, uma outra angústia, angústia da tensão, angústia do quase.
Na fila do supermercado, ninguém fala na iminência do fim do mundo, seja aquele que precisa vir abaixo — o mundo humanocentrado — ou o mundo que urge para ser sustentado e regenerado — nosso sagrado mundo da matéria, por onde corre toda a vida. Para nós, que estamos na fila do supermercado, o mundo é este ente mecânico, infinito e estático, máquina de suporte e fabricação das nossas bugigangas.
Todos os meus amigos são imaturos e eu também. Aqueles que têm mais livros em suas estantes são os mais imaturos. Vou em suas casas e fito os títulos, entre perplexo e fascinado: o que a humanidade tem tanto a dizer? O ceticismo só habita minhas entranhas porque a civilização existe e inventa a história, o passado, o futuro, e estratégias para escapar de tudo isso: nirvana, éden, reino da liberdade.
Do que vem da vida, porém, acredito em tudo e aceitei, até agora, as dores e horrores que ela me impôs. Mas temo afirmar que suportaria tudo. Não sei se suportaria a perda de um filho criança, como naquele filme de guerra em que o homem sírio, ao ver a vida do seu menino ensanguentado se esvair em segundos, na maca hospitalar improvisada, sequer foi capaz de chorar: revirou os olhos, como num êxtase invertido, e uivou: “Alá! Alá! Por que, Alá?”.
Minha vaidade repousa não na cobiça de perseguir o bom da vida, mas num orgulho inflexível, catatônico, quase mórbido, de somar forças através das tragédias que vivi. Fato é que a dor, sem desespero, ao passo que encouraça, purifica. Gosto da egrégora de uma alegria genuína e sei que qualquer gargalhada é o eco do sublime no corpo. Mas também são os chumbos e os invernos da vida que me restituem de vida. O enfrentamento da dor, às vésperas do rito de encouraçamento e purificação, é um frêmito de guerra, primitivo e arrebatador.
Meu estranho estratagema de quem prefere ser poeta do que místico, poeta do que político: acesso deus por fora de deus, numa via crucis estética e pagã. (E deus nem é o melhor nome. Vida.) Habitar essa tensão de tudo, esse choque de opostos. Assentar a respiração no baixo ventre e no ponto crítico da interseção de uma coisa e sua antítese. Calcar os pés no contraste sutil e amplo. Firmeza e delicadeza; ternura e força; essa dureza, para não ser esmagado ou varrido; essa doçura, para não amargurar ou vilanizar. O ideal simbiótico? Um sujeito feito de ferro e flor.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #56
Felipe Moreno
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