Viver é pagar por sensações
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1. Para 99,8% das pessoas deste mundo, viver é pagar por sensações. Produzir força de trabalho e pagar por sensações. Neste quesito, não há diferença estrutural entre o CEO milionário e a faxineira pobre. Diferença apenas em grau e qualidade: o CEO produz menos força de trabalho e, em retribuição injusta, paga para se safar das sensações desagradáveis e usufruir de variadas sensações agradáveis. Com mais força de trabalho, a faxineira não recebe o suficiente para conseguir se privar de muitas sensações desconfortáveis, ruins, péssimas, às vezes trágicas. As sensações agradáveis que sente são forjadas a ferro e fogo, na cultura íntima de saber ser forte, valorizar o primordial etc. Toda faxineira brasileira, nova ou velha, mas sobretudo a velha, é uma mulher estoica.
2. Terra, mundo material, torrente de fenômenos: mundo sensível. Logo, tudo é sensação. O bebê nasce e chora: sensação. O velho suspira e morre: sensação. Entre nascer e morrer, infinitas sensações investidas para, em último caso, fazer com que a vida continue e a morte se distancie.
3. Civilização: camada de múltiplas ficções interdependentes baseada na economia da produção de valor, distribuição e circulação de bens e serviços. O bebê nasce, chora e sobrevive: alguém pagou o hospital ou a parteira. O velho suspira, morre e tem onde ser enterrado: alguém pagará o cemitério e, talvez, o inventário.
4. Mundo material, somado à civilização: mundo em que se trabalha para poder pagar por sensações. Pagar por sensações deve ser o critério da nossa vida, a régua que determina a qualidade e o caminho, o que é realidade ou ficção. Acumular práticas, atividades e hábitos insubordinados ao ditame da financeirização das sensações é uma forma de sabedoria. Examine sua vida. Em qual atividade ou relação você não paga pela sensação?
5. Muitos povos ameríndios são extraordinários pela razão óbvia de que seus modos de vida ainda estão assentados numa cultura em que viver não é pagar por sensações. Nascem, vivem e morrem sem pagar por sensações, senão pontual e estrategicamente. A luta desses povos é pela manutenção desse modo de vida — pela manutenção de modos de vida em que a existência das múltiplas sensações não depende do complicado acordo da civilização, que envolve trabalho, moeda, bens e serviços.
6. Conhecer uma pessoa, futuro relacionamento, num bar, numa balada ou numa viagem é pagar pela sensação do encontro. Há casos de encontros, não tão raros, que não envolvem o pagamento das sensações atreladas ao relacionamento por vir. Conhecer uma pessoa na praia, dentro da água ou na areia, contanto que não envolva drinques e petiscos no quiosque, mas apenas o encontro cru, encontro de roupas de banho e nenhuma bolsa, pochete ou bolso com notas amassadas ou cartão de débito, é conhecer, e iniciar o que um dia se tornará um relacionamento, à margem do sistema de pagamento de sensações.
7. Quando não há opção de se livrar desse sistema, ao menos deve-se almejar um acordo inteligente. Pagar uma única vez por uma sensação duradoura, que possa perdurar durante toda a vida. Privilegiado é o cidadão que pode comprar uma casa.
8. O sexo, sensação primordial, pulsão primitiva, foi uma das primeiras sensações atreladas ao pagamento. Direta ou indiretamente, ainda pagamos pela sensação do sexo. Embora não tão basal e necessária quanto nossa relação com a comida, o sexo lateja sob vestes e peles, incontáveis vezes ao longo de um dia; e a grana, por sexo, palpita e não prevarica.
9. Encontrei uma calopsita na rua. Trouxe ela para casa, não encontrei dono. Adotei e calopsita. Brincamos, nos amamos. Presente gratuito da vida, evento genuíno: convivo com uma calopsita e não paguei por isso. (Mas quem a perdeu, provavelmente pagou para tê-la.)
10. Evento cultural público, no centro da cidade. O show principal concentrou uma multidão. Embora gratuito, tive que pagar a volta para casa: uma da manhã, o motorista, com o aplicativo inativo, tirou proveito da situação, da escassez de oferta no horário, e cobrou “por fora”, sem pena. Quarenta reais. Pechinchei e ele fez por trinta. Por uma corrida que costuma valer R$ 12,00. Não bebi, não fumei; comprei apenas uma garrafa de água, por seis reais. Garrafa de água, mais táxi clandestino, divididos por duas pessoas: a sensação do show me custou R$ 18,00. Valeu a pena.
11. Mas peguei covid. Foi na multidão, durante o frenesi coletivo, nos momentos de cada refrão. Dias depois, saúde em declínio, investimento em remédios. A sensação do show, no fim, saiu mais cara do que esperava. Não só financeira, mas fisiologicamente. Da apoteose para a tosse. Da ginga à febre. Do cantar alto e do sorriso à garganta seca e coriza. Comecei a repensar se realmente valeu a pena.
12. Relembro do show, de todo o rolê daquela noite. Desde que parei de beber e fumar, passei a observar, com muita curiosidade, meticulosidade, quase assombro, quem bebe e fuma. Fumar é vulgarizar o sistema de pagamento de sensações. A pessoa tabagista trabalha para assoprar fumaça. As ruas da cidade, num sábado à noite, pululam de gente que paga pela sensação do álcool e da nicotina no organismo. Boa parte delas, numa sofisticada estratégia de pagar pela sensação do álcool e da nicotina para, no fim, sob influência dos poderes químicos, terminar com a sensação do sexo.
13. Também um parque de diversão é a vulgarização do sistema de pagamento de sensações. A classe média e a elite do Terceiro Mundo, há décadas, exercem o fetiche de ir a Miami e à Disney. Famílias que pagam pela sensação de ver o Mickey Mouse. Alguns homens, tiozões e afins, já me disseram que as estradas dos EUA são um tapete, de que é uma delícia dirigir por lá. Pagam — e caro — pela sensação da tração de pneus em asfalto liso.
14. Eu escreveria um livro, um calhamaço, talvez um trabalho interminável, mais volumoso a cada edição, apenas de fragmentos que abordam, estudam e descrevem a vida pelo viés de que viver é pagar por sensações. Escrever é uma sensação exótica. Escrever é pagar por sensações?
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Felipe Moreno
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