Somos todos social media e o inferno do neoliberalismo

§ No existencialismo do tempo virtual, a performance (individual) precede a organização (coletiva). Hoje, porque somos todos social media (de nós mesmos e/ou de marcas alheias), deflagar uma simples greve ou convocar um grande ato de ocupação das ruas torna-se tarefa quase impossível. Nos transformaram em publicitários, especializados em moda (mesmo quando o assunto é política), e a publicidade é a profissão informal reinante. A publicidade é coração pulsante do tecnocapital.
§ Achatadas e hiper-saturantes, Instagram e TikTok foram vitoriosos ao desenhar plataformas que aboliram o hiperlink (afinal, era uma forma de desvio, uma ramificação) e nos confinaram em linhas do tempo que são apenas a moldura sufocante e o teatro de sucção dos nossos circuitos de dopamina. Inauguraram, enfim, a tirania da concentração dispersante, do foco saturante — a dopaminalândia.
§ Saturado de imagem e performance, o universo digital, em fulminantes dez anos, prostrou nossas capacidades de gerar grandes mobilizações políticas no mundo físico. O fluxo de dados hiperpersonificados e hiperindividualizados, nas telas, atrofiou as possibilidades de levantes em massa, nas ruas. A colossal torrente imagética das catástrofes alardeou nossos sentidos e, contraditoriamente, fez de nós espectadores inertes diante de um mundo que não parece real — que nos recusamos aceitar que é real, tamanha a magnitude dos seus problemas.
§ Pela primeira vez, a censura é reflexo do excesso: quanto mais informação, mais inação; quanto maior a enxurrada informacional, imagética e performática, menores os impulsos de organização. O torpor cognitivo é a marca dos tempos de conexão digital; a massa de dados hiperconectados embaraça nosso esclarecimento sobre o mundo e desarticula as tradicionais formas de coletivização.
§ Ruas vazias, redes abarrotadas: território da desregulação de neurotransmissores e da anestesia dos motins contra as barbáries, a internet se tornou a interface mais bem acabada de uma ilusória e perigosíssima fuga do fim do mundo. Quanto mais o mundo físico retumba, mais sedutora se torna a hipersaturação das telas e maior nossa vontade de uma overdose de hiperestímulo digital.
§ Ditadura de performance e desempenho, corporativismo das relações, profissionalização dos afetos, monetização da vida: em cinco décadas, o neoliberalismo e suas tecnologias implodiram todas as formas de ingenuidade, as doces, ternas ingenuidades nas amizades e outras relações amorosas; detonaram gestos simples e solidários uns com os outros; arruinaram com uma necessária despreocupação em relação a bens materiais. Monetizaram a camaradagem e, assim, toda forma de solidariedade foi convertida e compartimentada em serviços de aplicativo.
§ A datificação e a monetização da existência já percorrem nossos impulsos, neurônios, sonhos. Biografias são portfólios, memórias são banco de imagens, emoções são tags, solidariedade é serviço de aplicativo, desejos são projetos. Seguindo esse rumo, logo não daremos um abraço sem medir seu desempenho, não colocaremos o pé para fora de casa sem, antes, planilharmos o trajeto numa tabela de custos. Onde prevalece o rastreamento, o número e a métrica, a camaradagem, a inocência, o silêncio e o segredo caducam.
§ O amadorismo é o inferno do neoliberalismo. Praticar algo por mero gosto, curiosidade, amor, desvinculado da bitola profissionalizante e mercadológica, tornou-se a heresia número contra a máquina que aprendeu a converter — perverter — todas as vocações, exercícios, técnicas e paixões em ganho de saber corporativo, trunfo individualizante, troca de mercadoria e produção de valor monetário exponenciais. O amadorismo é o inferno do neoliberalismo e, por isso, manter-se amador (fazer por amor) é ainda estar à margem, um pouco a salvo desse projeto maligno que faz de toda a existência combo de produto e publicidade.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.

Abraços e até a farfalhada #88,
Felipe Moreno
>>> Leia as niusleteres anteriores <<<
>>> Instagram: @frugalista <<<