Sobre o morrer e o depois, o morrer e o rir, o morrer e saber morrer
§ Noite úmida, domingo: olho para minha perna, esticada na escrivaninha, e medito sobre os detalhes da morte. Amanhã ou depois, daqui a semanas ou décadas, esta perna, e os olhos que a enxergam, apodrecerão num caixote sob a terra; ou serão transformados em poeira. Poeira ou podridão, pessoas devem chorar pela perda da vida que, hoje, sustenta esta perna ativa. Uma perna branca, cumprida, masculina, com razoável quantidade de pelos. Amanhã ou depois, daqui a semanas, décadas ou nunca, pode ser responsável pelo movimento íntimo capaz de gerar outra vida humana, com outra perna, que, num tempo mais à frente, assim esperamos, deve ter o mesmo fim que a minha. E a sua. A perna. Os olhos. E também o assombro que nos faz divagar na atmosfera densa, tantas vezes aflitiva, de meditação sobre a finitude; esse mergulhar num mundo escuro e frio.
§ Criei couraça contra a morte: de tanto meditar sobre a minha própria finitude, a finitude dos outros, finitude de tudo, constatar o meu fim, hoje, ao contrário de doer, me provoca um excêntrico sentimento de aventura e novidade. A despeito da morte, estar vivo me agrada.
§ Pessoas que ainda desacreditam de quase tudo, não engolem nem digerem nada do imenso catálogo dos mitos, têm coragem de enfrentar sua angústia insolúvel. Pessoas que ainda contemplam as estrelas e perguntam por quê.
§ A sacralização absoluta da vida, se levada a cabo, sem permitir brechas a qualquer tipo de relativização, cria o tabu contra a morte — contra o assassinato, na verdade.
Meu grande tabu na vida, o maior, mais agudo, é contra o assassinato. Leigo e, no geral, secular, desconheço as razões claras para explicar por que sou tão aferrado ao preceito do não assassinato, incisivamente vigente nas tradições religiosas mais longevas.
Antigo Testamento, tábua dos mandamentos de Moisés, lei fundante, primitiva do monoteísmo: “Não matarás”. Preceito de todos os budismos, constado em Sila: “Não matar”. Espécie de interdito metafísico, proibição monolítica, lacônica e taxativa: não matarás e ponto final. Tal qual a assimilação e veiculação do recado cósmico mais sério de todos, tão sério e denso que dispensa a menor das justificativas.
Valor moral precioso da minha conduta, quando praticado na vida comum, no tempo de relativa paz. Valor fraquejante, covarde, muitos poderiam julgar, nos períodos de exceção e suspensão do bom senso que a guerra produz. “Não mataria um nazista, por exemplo?” E eu não mataria nem nazista, nem banqueiro, nenhum presidente, pois evito matar, inclusive, os mosquitos que me atordoam e trituram meus pés e canelas nas tardes de verão.
§ O que o general nazista encontrou depois da morte? O que encontrou depois da morte o padre da igrejinha da cidade? Ou a menininha, onze anos, que teve a vida ceifada pelo câncer raro? Ou aquele senhor, anônimo e comum, perene, durante 88 anos, na condução da vida dedicada ao trabalho, esposa e filhos? O que encontrou depois da morte o homem que matou outro homem? Também a vítima desse assassinato: o que encontrou depois do fim?
Sobre o que encontrar depois da morte: questão capital que divide crentes e não crentes. Para o crente, no geral, há um imperativo eterno: encontra-se, depois da morte, a resposta do que se fez em vida. Cada cabeça, uma sentença ou um mérito. Para o não crente, a homogeneidade absoluta, a nulidade de qualquer justiça cósmica, a sustentação do absurdo: depois da morte, tanto para o general nazista quanto a menininha vítima de câncer, o homem que matou outro homem e o padre da igrejinha da cidade, o vasto, o incontornável, o mesmíssimo nada. Para o crente: faça o bem, faça o mal, a vida continua — mas a qualidade da continuação depende de bem e de mal. Para o não crente: faça o bem, faça o mal, chegado o ponto final — tudo igual.
§ Tem a morte alguma relação com o riso? Uma suspeita íntima, do âmago, abstrata e iletrada, há muito me diz que sim. Então meu pai morreu, e o fato trágico produziu mais uma camada de sentido, agora nítida, à minha funda e estranha noção. Meu pai morreu sem ar, roxo, esbaforido. No caixão, porém, sorria. Sorria feito um santo que nunca foi. E eu, que chorei até me debulhar, durante dias, depois gargalhei. A risada explosiva, estridente, prolongada; a risada que provoca lágrimas e dores abdominais: precipício da alegria. A alegria aguda, irradiante, é uma total desposse. Neste país de tanta gente sofrida, mas tomada de humor, todo mundo, uma vez ao menos, quase morreu de rir.
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Felipe Moreno
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