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April 28, 2025

Serenidade e rebeldia


Uma megalópole é um insulto às formas de serenidade que, hoje, já nos parecem utópicas, blasé ou elitistas demais. Há um custo altíssimo, pelo qual estamos pagando, quando a aflição do tédio é sistemática e violentamente substituída por uma realidade de incessante bombardeio de estímulos. O que parecem apontar as experiências de profunda e prolongada serenidade, vividas por uma pessoa ou por muitas, em comunidades, através de ritos culturais ou exercícios religiosos e artísticos: é mais estável, lúcido e contente o ser humano que sustenta a dor do silêncio, dos seus provenientes estados de paz — paradoxais, porque carregados de brilho e, ao mesmo tempo, abismo, de alegria e monotonia —, do que o ser humano que se lança à fúria do excesso, que se entrega (ou é involuntariamente arrastado, como no nosso caso) aos ruídos e saturações do ambiente.

Nesse sentido, uma cidade deveria, no máximo, ser média: 500 mil habitantes espalhados numa área relativamente grande. Mas essa é uma solução tirada de um bolso furado, mais poética do que urbanística e arquitetônica. É melhor, mais coerente e assertivo retomar, de forma obsessivamente imperativa, ao problema central, fonte não de todos os males do desamparo humano, mas intensificador, sim, dos modos de vida que nos tornam piores e que abandonam a maior parte da humanidade e dos seres não humanos nas piores condições de vida: o tecnocapitalismo e as bestialidades da sua própria natureza, do seu processo irrevogavelmente acelerante, perturbador, abismático. Reino do extermínio de tantas existências, para fazer tiranizar apenas o fluxo de mercadoria, preços, consumos, datificação da vida e simbologia máxima da individualização, cobiça, disputa, o tecnocapitalismo tem sido igualmente bem-sucedido no desaparecimento da vivência da serenidade: faz dela sensação escassa, elitizada, como um commodity ou artifício de experiência para quem pode pagá-la — spa, ioga, meditação, atividades fitness, colonia de férias e turismo exótico com a estampa de retiro espiritual etc.

As esquerdas e os grupos anticapitalistas, então, reagem, para se firmarem no lado diametralmente oposto: excluem a serenidade como vivência necessária à luta, pois, não raro, a confundem com conformismo, quietismo; ou menosprezam os exercícios de cuidado de si cooptados e nichados pelo tecnocapital, justamente porque cooptados e nichados; ou desdenham das boas condições de vida que tais exercícios de cuidado de si, que nos abrem à vivência da serenidade, podem nos proporcionar. Enfim, até aqueles que, inevitavelmente imersos no sistema-mundo, mas que o condenam e se propõem a exercitar formas de superá-lo já não enxergam que a serenidade — sinônimo de calma, atenção, firmeza; ligado à paz de espírito, à clareza mental e à boa maturação das próprias emoções — pode não apenas ser um aliado de luta, mas uma condição indispensável ao árduo compromisso com a rebeldia.

O que quer dizer, então, que a serenidade deve pulsar, o mais imperturbável possível, no seio da nossa revolta política, civilizacional. Pois é, estranhamente, da serenidade que devem ser encaminhadas nossas pautas e práticas de rebeldia contra o tecnocapitalismo. (Um ataque coordenado e preciso não provém da perturbação, de um estado de euforia. Um ataque coordenado e preciso remonta mais a uma condição física, psíquica e emocional de tranquilidade e discernimento. É essa lição que nos ensinam, de forma prática, por exemplo, várias das artes marciais.) A coexistência dessa aparente contradição é, ao que me parece, a combinação ideal da nossa própria força de ação.


A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada O clarão das frestas. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.


Abraços e até a farfalhada #97,
Felipe Moreno

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