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July 21, 2025

Sensualidade e sopro (entre o hedonismo e a ascese)


§ A fruição poética (ou o viver em estado de poesia) compõe um forte aspecto espiritualizante (ascético) e, ao mesmo tempo, uma carga hedonista, de entrega e gosto pelas coisas que pulsam na matéria. Há uma busca pelo refino, pela sutileza: viver poeticamente é perseguir e ser varado pelos sopros que o mundo emana. Mas o encontro desse sopro — supostamente sagrado, dada a intensidade da sua delicadeza, quase éter — ocorre no trânsito sensual dos fenômenos. O sopro — e a fruição poética — na apreciação do sorriso de uma mulher bonita, que passa pela calçada. O sopro — e o viver em estado de poesia — na brincadeira com os elementos terrestres: jogar na areia, no mar, rolar no grama, rir e beijar na boca.


§ Foi Freud quem concluiu, lacônico e taxativo, que a vida humana, em melhores condições, se equilibra entre trabalho e amor? Concordo — porque assim tenho sentido — com o juízo desse sujeito intrigante, a um só tempo transgressor e moralista, dedicadíssimo perscrutador da psique. Se amo, trabalho melhor, se trabalho melhor, maior minha doação ao amor. Corda que se tensiona com o puxão na medida exata para cada lado — até se tornar uma só coisa, mesmo sendo duas: amar no trabalho, trabalhar no amor.


§ É natural que a quase totalidade da população viva alheia à poesia; assim como vivem distante de uma experiência religiosa. Ter acesso à poesia, como à experiência religiosa, exige uma disciplina de ferro. Até atingirmos seu tutano, seu tesouro discreto, o que resta, para ambas, é a aparência insípida, inútil, exageradamente sutil.


§ Aos que não puderam apreciar os encantos e as delícias das coisas tão simples — um dia de praia, a companhia de amizades, matar a sede com caldo de cana ou um copo d’água, uma ducha morna, as roupas no varal, o vento que entra pela janela, um cochilo no fim da tarde —, aos que não puderam, não conseguiram, não souberam, eu sinto muito. É um pecado; quase rezo por vocês. Aos que têm todas as oportunidades de viver os encantos e as delícias da simplicidade, mas não o vivem, e ainda exploram e impedem milhares ou milhões de pessoas que poderiam vivê-los, eu os desprezo. O pecado de vocês é maior; nem reza basta.


§ Nem minhas tragédias familiares, nem o fim do mundo vão ofuscar, agora, este momento tão simples e agradável em que como um bombom e caminho, enquanto as flores roxas do ipê despencam, uma a uma, a poucos metros dos meus olhos.


§ Os monges do deserto eram conhecidos pela sua extrema retidão, ascetismo. Rara exceção dessa sabedoria tão ressequida, há uma passagem literária que negocia com o prazer, sobretudo o estético. Um monge afirma que não deve haver, nos dormitórios, nada que proporcione prazer; e conta o caso de um irmão que “arrancou pela raiz uma flor silvestre que nascera em sua cela”. O outro monge concorda, mas contesta: “Cada homem deve agir de acordo com o próprio caminho espiritual. E, se um homem não pode viver sem a flor, deve plantá-la novamente”. Aqui, temos a prova de que até a seita mais fervorosamente dualista, negadora e amaldiçoadora da matéria, às vezes trepida frente ao vislumbre estético do mundo: mesmo sem querer admitir, deve intuir que deus também está na flor, no prazer pela flor.


§ Contemplar, sem fagulha de querer, sem traço de descriminação, apenas contemplar: oração final. Pois não parece que este mundo de formas, cores e movimentos só emergiu e se sustenta pela única finalidade de ser visto em sua total beleza?


§ Sexta-feira à noite, frio, assisto ao céu escuro, com nuvens. A intuição se acende. Quando eu for para a morte, sentirei medo. Mas se, num lapso, o medo fraquejar, e eu puder me abrir a uma pontada de ternura, estarei no êxtase, e em casa — a mesma casa de sempre, do breve tempo da carne, do tempo dos não nascidos e dos já partidos, a casa de tudo, maior.

§ O luxo é o adereço mais pobre usado contra o pânico da morte. Perseguir o luxo é se afastar da ternura.

§ Apreço pelo hedonismo brando e singelo que tempera meus dias: andar de bicicleta, comer paçoca, ir à praia, ver amigos, beijar na boca, praticar esportes. Gosto tanto quanto a forja dura que imponho ao mesmo cotidiano: esforço, suor, senso de obrigação. (Medito e me alongo, forço os músculos, medito de novo, fico quieto, silêncio e solitude.) O dom de me repetir em exercícios de aspereza me abre à primazia do detalhe, no coração da banalidade: a flor é uma flor que a maioria já não vê; choro de beleza pela inocência da conversa fiada entre duas senhoras no ponto de ônibus. O ideal — e o mais difícil — é a fusão das dimensões desse hedonismo ingênuo e relaxante com a firmeza dessa conduta que quer ser semelhante ao gesto de um guerreiro ou de um monge. Quando os dois aspectos — um de ferro, outro de flor — se encarnam em mim, sou um sujeito melhorado.

§ Crepúsculo de inverno, ipês roxos, Tom Jobim nos fones. Tudo o que pode me ferir — tombo, carro desgovernado, objeto perfurante — não deve me atingir. A matéria circundante, perfeitamente ordenada, baila: coreografia aprumada dos fenômenos, após inúmeros ensaios à exaustão. O piano do maestro e o poste com placa de proibido estacionar compõem a mesma relevância: atores da única peça cujo único protagonista é o fluxo sem fim e sem por quê. Abaixo da ordem púrpura e cadenciada sou, de repente, simplesmente, vigor e desfazimento. (Re)nasci sob este roxo que morre? Poderia morrer embrulhado neste lilás que se desmancha. Deslizo sobre a bicicleta: deslizo, sem passado, sem futuro, fronte à transfiguração. A noite cai em instantes.

o lilás se despede
pedalo, paro, suspiro —
até o breu vai brilhar


A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada O clarão das frestas. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.


Abraços e até a farfalhada #102,
Felipe Moreno

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