Seis haibuns sobre fumantes, fumaça, janela, calçadas
§ Velho edifício, construção do início dos anos 70. Há quem resida aqui desde a sua inauguração. Nunca foi reformado, apenas recauchutado. Todos os dias as pastilhinhas quadradas, coloridas, despencam, aos montes, das paredes. Acabado, tem seu charme: consegue ser mais bonito que o edifício do outro lado da rua, novíssimo, moderno, exótico.
edifício Presidente:
a senhora espia e fuma
pendurada no batente
§ A noite cai e vou até a padaria. Que não é exatamente padaria: antiga vendinha de bairro, hoje conveniência, miscelânea de mercadinho, tabacaria e, agora sim, padaria; vende desde pão a cigarro eletrônico, óleo de cozinha a desodorante. Sem clientes lá dentro. O único funcionário, do lado de fora, recostado na mureta, acaba de acender um cigarro. Digo para não ter pressa: pode fumar e depois me atender. Mas ele tem seu macete: prende o cigarro nos buraquinhos do muro, entra e diz que o pão saiu há pouco. Faz tudo com educação e um tanto de pressa: cumpre com o dever sem tirar os olhos da fumaça que vence lá fora.
no muro, o cigarro
é tragado pela boca
do tijolo
§ Sem-teto e sorridente, sem os dentes da frente, sem vergonha de sorrir. Não bebe; fuma cigarro quando ganha ou, a serviço do não desperdício, encontra um cigarro pela metade, até mesmo um terço restante, rolando no cimento, ainda acesso, arremessado por alguma mão branca porca e apressada. Os cigarros capturados pela metade, às vezes, são melhores do que os que ganha inteiros, de bom grado: diz que encontrar no chão é mais emocionante e divertido, pois se sente sorteado. Fumar, para ele, é sempre um espanto: não gosta, mas não odeia. Acha o cigarro uma invenção curiosíssima: “O carro dá para entender. O prédio. O salto alto. Agora eu nunca entendi direito esse trocinho enrolado que a gente põe na boca e puxa fumaça. E pior: mata!”. E gargalha. É inteligente, sagaz, tem bom vocabulário. Cinquenta e dois anos, nunca entrou numa universidade. Largou na sétima série. Dias atrás, ganhou uma sacola de roupas em bom estado da mãe de um jovem universitário. Agora, pelas ruas do centro, anda sorridente e aprumado.
craquelada, em azul
na camiseta do mendigo
“Somos todos Unisul”
§ Carro em movimento, ronco do motor, fumaça escura do escapamento, cheiro de combustível queimado. Sinal vermelho. Carro parado, antebraço forte, forrado de pelos brancos, penso na janela aberta. Marlboro vermelho entre os dedos, um trago, fumaça branca da boca, cheiro de nicotina, ronco do pulmão. Sinal verde. Engata a primeira, cigarro no canto da boca, olhos cerrados.
senhor tatuado
fuma e acelera
o Gol quadrado
§ A infinidade de detalhes da vida cotidiana explodem minha capacidade de construir uma narrativa longa. Explodem minha capacidade de escrever ficção. Balcão da lanchonete, esquina com a avenida Brigadeiro Luiz Antonio: dose de Cinzano, seis reais; porção de provolone, quatorze. O senhor japonês, rosto simpático, pochete de corino preto, tira o lacre do maço de cigarro: aquela fitinha vermelha que desliza, dá a volta em si mesma. A televisão, em cima da geladeira de refrigerantes, toda engordurada, transmite jornalismo policial. Segunda-feira, 18h: dia e horário de culto à flanância. Sou apenas um fiel. A trabalhadora, em fim de expediente, compra um cigarro solto, filtro branco.
fogo e pito:
o isqueiro na cordinha
no balcão de granito
§ Por falar em cigarros, cerca de quantos este senhor, parado na esquina, mocassim marrom, camisa polo cor de rosa, pele seca e arroxeada, olhos fundos, quantos cigarros este senhor fumou ao longo da vida? Caso esteja com setenta e cinco anos, tenha iniciado no tabagismo aos quinze e, desde então, mantém a média de um maço por dia, já consumiu, ao longo de seis décadas, aproximadamente 438 mil cigarros. Quem sabe o próximo, agora mesmo, seja o de número 438.001.
dedos trêmulos
pinçam, no bolso da camisa
o maço amassado
Abraços e até a farfalhada #3,
Felipe Moreno
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