São Paulo impossível
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1. Cidade titânica, tirânica, tétrica. Esbanja e espanta. Monstro dos mil abismos. Arruinada pela prosperidade, detonada pelo progresso. São Paulo, capital, 2023: choque bruto entre o épico e o sórdido. Cidade impossível.
2. São Paulo, capital, julho de 23. Na esquina da Ipiranga com a São João, uma imensa loja de capinhas para celular. Nos arredores, um bar-lanchonete — mais um dentre centenas. E, no bar-lanchonete, 10h52, um trabalhador, parrudo, trinta e poucos anos, almoça arroz, feijão, couve e filé de frango enquanto assiste, na Band, o noticiário que jorra sangue.
3. Entro em três lojas de shopping, não sei exatamente para quê. Lojas Americanas. Samsung. Daiso. Indústria têxtil, indústria de tecnologia, indústria de cacarecos. Sinto fraqueza, olhos baixos, um pouco de náusea. Capto um leve sinal físico de ansiedade. Posto em reflexão, esses ambientes me martirizam. Aqui não encontro saída do meu juízo materialista, à minha agonia biosférica: o mundo não suportará, já não suporta. A cada ano, mês, dia, sugamos o que a Terra já não tem.
4. O shopping é o ambiente que deslumbrou a minha infância: reconforto e oásis, apogeu das satisfações, a felicidade estava no sabor de baunilha de uma casquinha do McDonald’s e nos corredores da Ri Happy. Hoje, aos trinta, a sensação é oposta. Exagero no juízo, descompenso, descambo para a intolerância: apocalipse, niilismo, degeneração material-espiritual, túmulo da civilização. Todo shopping é uma obscenidade.
5. Monstro que consome a matéria e cria, em seu cativeiro de concreto e luz, doze milhões de autômatos mediados por trabalho e consumo, explorações multidimensionais e doses extravagantes de prazer. Que espécie assustadora é o sapiens, de uma diversidade infinita. Temos o Baden Powell e o Dalai Lama. Temos o Ronaldinho Gaúcho e o Elon Musk. No shopping, é fácil encontrar figuras semelhantes ao Elon Musk e ao Ronaldinho Gaúcho; improvável encontrar um tipo Baden Powell; impossível se deparar com um Dalai Lama.
6. Mercado atacadista. Tudo gigante, imponente, seriado. E esta é apenas uma célula entre dezenas na cidade, centenas no estado, milhares mundo afora. E, nesta célula, um mundaréu a ser consumido, em poucas semanas, por um aglomerado de bocas. Numa única prateleira de muitos metros, incontáveis marcas de molho de tomate, cada produto numa embalagem plástica. Frutas envenenadas no interior de películas à base de petróleo. Se o mundo não desabar em dez anos, é porque ele realmente é mais tenaz e misericordioso do que o concebemos. Nesse nosso ritmo, no entanto, não deve durar mais que trinta ou quarenta anos.
7. Tive que sair daqui, onde nasci e cresci, porque já me é impossível ver o mundo despencando de forma tão feroz e obscena. Despenca para aqueles que sabem que nosso mito do progresso, na realidade, é bancarrota. Progride para aqueles que ainda estão enfeitiçados pelo mesmo mito. A cada novo shopping, a cada novo conjunto de torres, a cada ônibus com centenas de trabalhadores espremidos, despenca. Já não ouvimos o som da queda porque somos autômatos, entre o hedonismo do executivo dispersado num potinho de gelato italiano que custou R$ 27,90 e o sono do trabalhador, minado pelo bombardeio de luzes e ruídos da estação de metrô, às 23h59. Com garantias de me privar dessa grande roda de hamster que nunca para de girar, me privo, me isolo, resguardo minha sanidade — viver em São Paulo, hoje, significaria ver, numa proximidade insuportável, o mundo desabar, e eu com ele. Uma distância de 700 km é medida preventiva.
8. Existe a cracolândia e existe o shopping Cidade Jardim, a 17 km um do outro. A Paraisópolis e as torres triplex do Morumbi, geminadas. Banalizamos o desastre.
9. São Paulo, cidade sobre-humana, coerentemente leva o nome desse santo que, em vida, foi excesso e desmesura, trabalho e vontade de expansão. Para muitos, é Paulo de Tarso quem funda o cristianismo. Para Nietzsche, é ele quem o deturpa. Figura irrefutavelmente forte e fanática: a metrópole é a metáfora distópica da sua vida e obra, vertida, porém, em pleno pecado.
10. Desço a serra e pouso em Santos, onde vivi minha adolescência. Também aqui é preciso ficar atento: atmosfera que ferve e assusta. A Baixada Santista fecundou um caiçara colérico. Todo cenho é incisivo, toda língua é cáustica. Ouço da boca de um para outro, entre a raiva e a piada: “Leu com o cu e interpretou peidando, hein?”. Meu melhor amigo me busca na rodoviária. Subo na garupa da moto e, atravessados por ruídos, conversamos aos berros, vozes abafadas pelos capacetes, a Bros 300 cilindradas cortando as ruas deste território denso, umidificado em sal e volúpia. Sempre quando venho para cá, minha libido aumenta. De todas as memórias que tenho daqui, entre a alegria e a sordidez, o frêmito e a ansiedade, penso em escrever um fabulário. Um fabulário visceral da vida caiçara.
11. Mal me sento no banco em frente à praia, canal 3 de Santos, o homem me aborda: alto e gordo, Nike Shox 12 molas e bermuda jeans até as canelas (moda atemporal do malandro santista), tatuagem de torcida organizada do Santos na batata da perna. Aperta minha mão com força, senta ao meu lado, desabafa: “Tomei tapão na cara da minha mulher. Pegou meu celular e viu uma foto minha com outra. Vacilei, né? Ontem ela falou que ia sair e dar pra outro, eu falei, ‘demorou’: sai e dormi na casa dessa mulher. Agora vem me dizer que não tinha dado pra ninguém, que foi dormir na casa da irmã? Não fode. Fez o maior xabú, no meio do McDonald’s, meu filho vendo”. Bufa, puxa uma caixinha estorricada de batata, começa a mastigar, me oferece. Um morador de rua passa e olha as batatas; o homem intercepta: “Tá olhando o que, pau no cu?”. Depois ri. E encerra, já se levantando: “Tô no ódio, vou sair andando”.
12. Um copo de milk shake derramado a menos de um metro da calçada. O copo estático, o leite vaza, penetra o asfalto. O motoboy do iFood, que se desvia de um Civic prata, em cima da hora, bem antes do acidente, esmaga o copo de plástico com a roda da frente: barulho do plástico amassado, barulho de buzina, barulho de conteúdo balançando na mochila do iFood, o leite respingado.
13. Sem o suor e a fibra do nordestino — galo forte a despertar antes de todos neste curral de pedra —, o burguês paulistano é incapaz de se levantar da cama e, em três dias, morreria de inanição. Esta cidade sobre-humana é sustentada pelos corpos de humanos sobrecarregados, gente simples e aguerrida, que vem lá de cima. Como Brasília, erigida, em pouquíssimos anos, por nordestinos e nortistas, São Paulo é mantida pelo mesmo povo, por tempo indefinido.
14. Em profunda dor, abro mão do veganismo, mais uma vez, e me permito comer um sonho de padaria, em qualquer padaria — porque qualquer padaria, em São Paulo, é a melhor padaria. Em cada pedaço doce, cremoso, minha dor se esvai. Como naquele sexo: meu corpo, em sussurro, fundido num corpo novo. E a dor, mais que esvaída, como que transmutada. O princípio regulador do apetite e da libido parece correr pelo mesmo fio de vida. Portas de duas entradas: de um lado, o erro da gula e, do outro, o gesto substancial e digno, aterrado: comer, apenas comer. De um lado, o erro da luxúria e, do outro, a própria dissolução no outro: comer e ser comido. A boca como grande veículo.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #55
Felipe Moreno
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