São Paulo agressiva
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1. Desembarco em São Paulo, rodoviária do Tietê, sexta-feira, 7h40, ensolarado. Menos de cinco minutos na cidade, atravesso a primeira rua e já sou assaltado — assaltado pela avalanche dos pequenos absurdos do cotidiano paulistano, feito de excesso de gente e matéria, torrente de trabalhadores e tralhas, vórtice de obrigações, máxima saturação dos abismos sociais; onde, em cada metro quadrado, explode um fato, um relato, um diálogo, uma composição estética hedionda ou fascinante.
2. Apressada, ofegante, a mulher, de uniforme do trabalho, passa pela calçada do boteco-lanchonete e conta um causo, um desafeto, para o colega ao seu lado: “Virei para ele e falei: “Errar, todo mundo erra; acertar, todo mundo acerta. Agora, tem uma coisa: gritar, você grita com a sua mãe”. Releio a frase (transcrita, aqui, exatamente da forma como foi dita), me atento à precisão rítmica: de uma cadência memorável. Fala urbana, operária, agressiva e musicada. Daqui a cem anos, aposto, nem a mais extraordinária inteligência artificial generativa poderá criar um diálogo tão bom quanto fez esta mulher, revoltada, esbaforida, diálogo de cronista refinada.
3. Explosão de simultâneas cenas insólitas no mais reduzido tempo e espaço, semiótica do despedaçamento convulsivo: escrevo fragmentos e, em certo momento, tomei a decisão estrita de somente escrever em fragmentos, menos pela influência estética dos meus escritores preferidos, mais porque sou paulistano. Em literatura, percebo que traçar a narrativa encadeada, aqui, beira a artificialidade tosca — artifício da forma a embotar a crueza desta realidade que se impõe, sempre, como fragmento. Mais interessante, portanto, é assumir a estética do estilhaço que me fez sujeito.
4. Precisei abandonar esta cidade para melhor enxergá-la: clichê fundamental da distância necessária ao esclarecimento. Nos últimos seis anos, criei habito: venho a São Paulo de duas a quatro vezes ao ano e, cada vez que volto a pisar nesta terra, lavo o rosto na pia do banheiro da rodoviária. Saio à rua: olhos renovados, cristalinos, fusão de lente com mira, capto as linhas e entrelinhas deste monumento selvagem; jogo, derramo meus olhos neste império do caos como quem, num êxtase diminuto e secreto, se lança, nu, em mar aberto — não como ação suicida, mas encenação segura.
5. Na entrada da estação de metrô Tietê, um homem, ferida enorme na cabeça, tenta vender um único frasco de perfume falsificado embalado em isopor e papel filme.
6. Em São Paulo, me torno cronista do estilhaço, do absurdo. Mas São Paulo, agressiva em tudo, assedia minha escrita, perturba minha capacidade de captação e transmutação do sensorial ao signo: a avalanche de cenas, a torrente de estilhaços gera o descompasso entre o que quero registar e o que meus sentidos, limitados, são capazes de absorver. Muita coisa vaza, escapa.
7. Estou no Brasil pés no chão, longe da minha bolha esquerda-café-orgânico-sem-açúcar. No bar-lanchonete (boteco-lanchonete), dou bom dia e faço o pedido: “Café no copo americano [desnecessário, redundante, porque todo café, em qualquer boteco-lanchonete, é servido no copo americano], sem açúcar [ingênuo]”. A tia, avental e touca de redinha nos cabelos, é categórica: “Café sem açúcar eu vou ficar devendo”.
8. O custo da paz, da mansidão contemplativa que Florianópolis me proporciona é o da opacidade fílmica, da escassez das fulguras urbanas que São Paulo, em contraste— é às custas da estabilidade dos meus neurônios —, me entrega em escala monstruosa.
9. Gorete é o nome da tia, avental e touca de redinha nos cabelos, que atende, ranzinza, sem trégua, a fome e as necessidades dos clientes. Do balcão, carca o senhor que, nos fundos, não encontra a entrada do banheiro masculino: “É a última porta, à sua direita, meu senhor. Você vai ver a figura de homem na porta. Aí, onde o senhor tá tentando entrar, é a cozinha!”.
10. Do outro lado do balcão, bem à minha frente, Gorete bufa e empurra laranjas contra o espremedor; me lança, frontal: “Você trabalha com gente? Estuda, viu? Estuda bastante para poder trabalhar o dia inteiro na frente do computador”. E me serve, no copo americano, o café preto três vezes mais doce que uma bala de café.
11. Antebraços apoiados no balcão de granito gorduroso, beberico a bala de café enquanto contemplo, do alto de uma prateleira capenga, próxima ao caixa, a imagem de Nossa Senhora Aparecida, em gesso e tecido. Nossa Senhora Aparecida está protegida pelas garrafas de rum Bacardí, uísque Red Label e cachaça Pitu.
12. Dentro da estação, dois funcionários do metrô, idênticos (coturnos, fardas pretas, brancos, carecas, parrudos e de braços cruzados), resenham sobre suas vidas financeiras. Finjo organizar minha mochila para fisgar fragmentos: “Rende 105% do CDI; quanto você paga na sua conta de luz?; eu gosto de ser mais minimalista”. Nenhuma surpresa. Qual a chance de estarem discutindo sobre a feição muda dos anjos, a matéria sinistra que habita nosso inconsciente ou a descarga de DMT que um corpo sofre no momento da morte?
13. Desço a serra pela via Anchieta, tortuosa. Baixada Santista: uma São Paulo que escoou, que desceu de nível e, no seu fundo quente, abafado, fermentou. Além do mais, o temperamento geral da gente destas cidades do litoral paulista é o apimentado, picante, abrasivo. Segundo Padre Manoel da Nóbrega, colonizador português, São Vicente, primeira vila fundada pelos invasores, em 1532, era terra de gente de “má criação”, capazes “de grandes maldades”.
14. São Paulo, antro de cenas sórdidas, absurdas, cômicas, em questão de minutos, segundos — a abastecer meus haibuns urbanos. Homem de pés imundos, chinelos estropiados, camiseta furada, porém barba comprida e milimetricamente delineada, acabamento degradê, do pôr fazer, nas bochechas, ao volume, na região do queixo. Homem marombado, gel no cabelo, trabalhador comum, lê, durante toda a viagem de metrô, A arte da guerra, Sun-Tzu. A roda do carrinho do supermercado emperra: um tufo de cabelo — quase uma peruca — contorna o rolamento.
por fim, vira-latas
trepam atrás do quiosque
do Burger King
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
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Abraços e até a farfalhada #70,
Felipe Moreno
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