Renúncia e frugalidade

1. Somos todos hedonistas, afinal. Até o monge é hedonista no seu ascetismo: seu prazer provém das suas renúncias. A chave é: qual programa de prazer escolher para a própria vida? Que relação firmar com os prazeres? Penso em Epicuro, filósofo grego, e seu hedonismo semiascético, calcado na prudência e na moderação. Mais de dois mil anos depois, ainda me parece impossível desbancar sua sabedoria: a temperança é o melhor governo do reino dos prazeres.
2. Quando a penosa sensação de sacrifício é excedida, alguns exercícios de renúncia e privação revelam surpreendente prazer: a aridez do não fazer, enfim, goza mais que o desbunde do fazer, ou o gosto de ferro da retenção é mais palatável que o sabor açucarado da permissão. Estado em que o esforço — sobretudo físico — está mesclado a um estranho confim da dimensão do… conforto. Saber mais corpóreo que meramente cerebral, a supremacia ante à preguiça e à constante permissividade prova, agora, ser um prazer maior — porque não só físico, mas também moral, e porque vive o bom no pouco. Ascese moderada, de saber acurado, árdua, porque inicialmente privativa, mas que nos ganha à medida que, a longo prazo, nos liberta; e nos revela: nem todo prender faz mal, nem todo soltar faz bem.
3. A única forma de retenção saudável é aquela cujo objetivo final é o soltar. Em termos absolutos: soltar-se da prisão de não poder dizer não quando o corpo, pela sabedoria do seu âmago, pede para que se diga não. Como um registro evolutivo, parece que o corpo sabe — para aqueles atentos a escutá-lo — que mais vale o seco interdito do agora, em prol da segura, prolongada e deliciosa manutenção das sensibilidades, do que as constantes explosões permissivas, a mal acostumar os neurônios, a esgarçar saberes e sentidos.
4. O sutil é enorme. A sutileza entre as coisas é de maior importância. A sutil diferença entre uma coisa e outra representa a maior das transformações. A diferença entre ver e ver com atenção; entre fazer e fazer com atenção. Lavo louça, disperso; lavo louça, concentrado — aqui, a experiência repousa em outra dimensão. A própria dimensão natural das coisas, rente ao mundo — dimensão plural e texturizada, riquíssima, recheada de nuances — ante a dimensão etérea do excesso de pensamentos autocentrados, repetitivos, viciados, achatados, que nos embota ou nos arranca deste mundo. Sutis diferenças no estado de consciência. Sendo a própria atenção o núcleo das sutilezas.
5. Em comum, para as mais refinadas sabedorias de qualquer época, de qualquer falange, a cristalina e profunda certeza de que fora da frugalidade não há felicidade. A pessoa sábia que enalteceu o luxo não consta na história. A fartura e a opulência, desde sempre, foram hábitos dos tiranos e déspotas, carrascos, miseráveis de alma. Só depois de muito, com o advento e a soberania do capitalismo, no que este tem de religião, é que a glória e a ostentação se tornaram totens coletivos, vício das massas. Hoje perseguimos, até o burnout, a depressão, o infarto ou o homicídio, aquilo que a sabedoria da história clamou para repelirmos.
6. O que impede a proliferação da frugalidade, hoje, não é exatamente a cultura do excesso e da ostentação, mas a tragédia do seu oposto, mantida, a ferro e fogo, pelas classes que vivem o excesso e a ostentação: eis a miséria, a paúra, a escassez do básico que, por ser sobrevida, produz a repulsa à frugalidade àqueles que chegam a conquistar alguma coisa.
7. A simplicidade é toda uma complexidade, uma sofisticação. E o máximo da sofisticação — instância da real simplicidade — se confunde, à primeira vista, com o quase tosco. Do contrário, é comum que o pretensamente requintado seja, de verdade, apenas a expressão de um quase ridículo.
8. Tenho uma bicicleta e talvez, um dia, eu tenha um Fusca. Lavo louça e um desejo vem à mente: ter uma casa própria. Um apartamento de um cômodo é mais que suficiente. Quero ter a mesma bicicleta para o resto da vida. Seco as mãos no pano de prato e afirmo em silêncio, a partir desse fundo de consciência onde brotam os desejos: minha riqueza está diretamente atrelada ao querer coisas poucas e simples — e, quando possível, nada querer.
9. Caminho na via estreita: caminho entre a calçada e a rua. Rumino minha crítica a esta cidade, tão ruim em infraestrutura. Chego em frente a casa dessa grande amiga, paro em frente ao portão baixo e assobio. Ela gosta quando assobio e nunca não se demora a aparecer. Fazemos piada sobre o hábito de assobiar em frente ao portão. Nesse caminhar, nesse encontro, nesse assobio e nessas piadas, entrego toda a minha energia, porque é o cotidiano, afinal: mergulhado aqui, enaltecido da sua banalidade, tenho a chance de mitigar essas forças que nos perseguem e nos aterrorizam: o desejo de grandiosidade, glória, luxo, fama. O cotidiano me protege.
10. Segunda-feira: a alegria pelo cotidiano. O cotidiano como minha única possibilidade de santidade.
11. A alegria e a inocência de uma pipa no céu azul no auge do verão brasileiro.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.

Abraços e até a farfalhada #67,
Felipe Moreno
>>> Leia as niusleteres anteriores <<<
>>> Instagram: @frugalista <<<