Ratazana, maçons, guarda-roupa de MDF (seis haibuns)

§ Na mesa do bar, dois estudantes de economia conspiram contra Bill Clinton (?). O telão transmite jogo do Corinthians, que perde. Em pé e tenso, pito meu palheiro, olhos vidrados na tela, mas os ouvidos inclinados na conversa dos jovens intelectuais, alheios ao futebol. Pinço o próximo assunto: um pergunta se o outro já leu o Livro 1 d’O Capital. O outro diz que sim, que claro. O tempo fecha, o vento invade a Ilha. Faço fumaça, os pelos dos meus braços se arrepiam. Volto à minha mesa e beberico água tônica. A noite terminará com o Corinthians eliminado pelo São Paulo, semifinal da Copa do Brasil. Na lata da água tônica, o slogan: o amargo transforma. Com meu manto corintiano, pago a comanda de oito reais: seis da água tônica, dois do cigarro palheiro. Efusivos, eloquentes, os jovens ainda palestram; me pergunto sobre o quê, agora, e o que pensam do futebol, do colapso climático, o que pensam de deus.
Marx e Corinthians:
a religião
é o time do povo
§ Morro da Carvoeira, quatro e trinta da tarde, vento bom e sol fraco. O inverno já partiu — o inverno sequer chegou. Ciclovia, subida, bicicleta ao meu lado, vermelhinha, magrelíssima, fiel companheira de anos e espero tantos outros. Caminho e comungo, inspiro e expiro, ligado, cafeinado, olho rente ao piche. O olho rente ao piche flagra a margarida no meio-fio e, em paralelo, a carne e os pelos prensados desse enorme rato, apenas o rabo intacto. Lembro de Nelson Cavaquinho, poético e mórbido: “Quando eu passo/ perto das flores/ quase elas dizem assim/ vai que amanhã enfeitaremos o seu fim”. “A cidade, túmulo da floresta”, só esconde os corpos da espécie que a criou. Maculados de preto e cinza, poeira e borracha, outros terrestres e alados, no meio da rua, produzem o museu das vísceras.
a morte encarna em cinza —
ratazana espatifada
na ciclovia
§ Essas lojas maçônicas suntuosas e cafonas. Arquitetura de palácio sóbrio, mas as cores: branco e azul claro, quase azul bebê, como as cores do Avaí, time de futebol de Florianópolis. Essas carros de luxo, esses homens de terno, essas mulheres (sim, mulheres) de salto. Templo e rito ostentatório, fingindo-se discreto, de uma velha elite obscura, à sombra de um velho Iluminismo. Comungam a decadência crendo resguardar o sal da vida ou o ouro do universo. Pose, posse, fartura: num templo de vendilhões como esse, Jesus escandalizou. Mas Jesus está estático, no quadro pendurado na parede do salão. E, no bifê para os grãos-convidados, aspargos e tremoços.
o velho pigarreia
e bate a porta do carro
de duzentos mil
§ Caminho e fito: toda cidade é uma crosta de matéria dura cravada sobre a riqueza úmida dos compostos orgânicos, bactérias, fungos, micro-organismos. O ônibus passa, grosso, e despeja fumaça: quase cinco da tarde, o motorista, suponho, quer logo chegar no terminal e tirar cinco minutos para verter o café passado, fumegante, três colheres de açúcar, servido em copo plástico transparente, pois, viciado no cafezinho da manhã, do pós-almoço, do fim da tarde e do pós-janta, os nervos do motorista, a essa altura, já berram a abstinência. Aquele senhor de sempre, dia simpático, outro não, está parado em frente ao portão da sua casa.
corcunda e surdo
o velho de cachecol
bebe chimarrão
§ Ruído de serra, névoa. A poeira baixa e surgem os rostos por trás, marcados, cavos, oleosos, sujos. A serralheria: as máquinas são modernas, atendem pelo WhatsApp, têm maquininha de cartão, aceitam PIX. A despeito dos pequenos avanços técnicos, toda a atmosfera é a mesma de sessenta, setenta anos atrás. Entre uma serralheria em Florianópolis e um escritório de tecnologia em São Francisco, Califórnia, há uma cavidade colossal que divide época, estética e, sobretudo, propósito. Como se a serralheria do sul global e a big tech do norte já proporcionassem o vislumbre da cisão entre humanos e transumanos.
a serralheria
imunda, cheia de tralha —
três homens trabalham
§ Temporal, podridão. Mundo de detritos. Um guarda-roupa de MDF foi deixado em frente à casa, ontem, na esperança de que alguém o levasse. Ninguém o pegou e o céu desabou. Era um guarda-roupa de MDF; agora são placas encharcadas e fofas, farelos nas reentrâncias da calçada, farelos esvoaçados para a rua, farelos nos pneus dos carros. É mais fácil ver poesia enquanto o temporal acontece — porque apocalíptico — do que quando ele termina e deixa as coisas da rua num estado de: levadas pela água, lavadas pela sujeira. Tudo escorre, escuro, e as coisas fedem: há quem goze e há quem sobreviva.
uma camisinha
boia na vala escura
ao lado de um pombo
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #60
Felipe Moreno
Don't miss what's next. Subscribe to Farfalhada niusleter: