Rachadura sob os pés: civilização, fissura e desencanto

1. Nós, completos desiludidos da civilização, não deveríamos crivar em nossas consciências, até o ponto da neurose, a realidade do fim deste mundo? Não ser capaz de sair de casa, de pegar um elevador, de sentir uma onda de calor extremo sem pensar: essa alta temperatura é a lufada da febre que impomos à Terra, e perambulamos sobre os escombros deste mundo sem conserto, sem chances de prosperar.
2. Sonhar a vida no solo do impossível; construir a base do próprio mundinho no terreno inexistente. É assim que vivem as pessoas alheias ao ecocídio.
3. O buraco em que nos enfiamos e a ruína que causamos à vida na Terra, daqui até centenas de milhares de anos, expande as léguas do meu ceticismo em relação à nossa civilização — essa aberrante amálgama de infindáveis ímpetos de domínio e transcendência.
4. Monoteísmo: início do fim da biodiversidade.
5. Um estado é laico até que sua guerra — santa — comece.
6. A economia liberal, aferrada à própria necessidade de crescimento constante, expõe as algemas que fechou sobre seus punhos. Economia de cativeiro, sua desenfreio por hiperdesenvolvimento, no fim, confrontará todas as baixas.
7. Civilização inflacionária, escravizada pela própria sanha de expansão, crescimento e acúmulo: como nem seus mais prodigiosos gênios puderam enxergar, não tão distante, as barreiras e os tetos, sempre nítidos, deste mundo que, apesar dos limites, é abundância? Civilização da exorbitância, açoitada pela tara em tirania e grandeza, cega por uma luz artificial, inventada, luz que só soube buscar transcendência (do judaísmo ao iluminismo): seu torpor foi tão intenso a ponto de não o fazer perceber que, logo ali, recairia, avassaladoramente sobre si, a penumbra e o vazio?
8. A civilização ocidental padecerá da congestão de tudo que devorou, de tudo que engoliu.
9. É a lição terminal que nossa civilização deixará para as próximas, assim espero: o progresso, desembestado, bitolado, precede a queda.
10. No fim, o transumanismo reproduz a mesmíssima sanha escatológica (doutrina do fim do mundo) judaico-cristã, mas, ao invés de usar profetas apoteóticos e livros sagrados, se estabelece com bilionários criminosos, supercomputadores e realidades virtuais.
11. Quando defrontados com o fim do mundo, muitos se escoram atrás de um escudo retórico, de pretexto geofísico, biológico: o mundo não vai acabar, quem acabará somo nós. Há de se ajustar a semântica, colocar as coisas no devido lugar, e lembrar, com mais precisão: é o fim do mundo, sim, mas não o fim da vida. A vida, na sua eterna pulsação, após o fim deste, há de criar outros mundos, outros nós.
12. No que tange a relação do animal humano com o supremo — dimensão ancestral, inquietante e funda — é imperativo que, na era do ecocídio, toda e qualquer espiritualidade se restitua e finque suas cosmogonias na imanência. O terror do ecocídio não deve potencializar qualquer novo (ou velho) impulso de transcendência, escape do mundo; ao contrário, precisará ampliar o horizonte das místicas terrenas. Vir ao mundo na era da sexta grande extinção em massa é um evento assombroso e cruel — que aniquilará, infelizmente, as psiques indispostas, lançando-as ao desespero e ao niilismo feroz; ao passo que dará a chance, às psiques dispostas, de uma afirmação do supremo na Terra, um despertar no mundo, uma iluminação a partir da imanência.
13. Devolver a nós mesmos, civilizados, o assombro de tudo, por tudo, cada partícula ou advento, cada gesto ou acontecimento. Este mundo é um claro espanto; não nos espantarmos com ele, por ele, é assumirmos a condição de autômatos. Chafurdar na raiz de todas as dúvidas, treinar os olhos à inocência.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #66,
Felipe Moreno
>>> Leia as niusleteres anteriores <<<
>>> Instagram: @frugalista <<<
Don't miss what's next. Subscribe to Farfalhada niusleter: