Quatro fragmentos sobre colonização tecnológica
1. A falácia da tecnologia neutra é de mesma linhagem que a argumentação perversa do neoliberalismo: se começa a fazer mal, a culpa não são dos dispositivos (ou do sistema), mas de quem os usa (ou de quem fracassa no sistema). Afirmar que toda tecnologia é neutra é legitimar a ideia que seus criadores são pessoas vazias e amorais, destituídas de qualquer orientação política, desejo, visão de mundo. A tecnologia é, simplesmente, a pura materialização das ideias e cosmovisões que seus criadores detêm. A atual tecnologia é um monopólio, uma frente monolítica. Sabemos onde surge, quem as desenvolve.
A lógica, portanto, é inversa: neutro, a princípio, é quem as usufrui, pois cada computador, dispositivo, redes social, aplicativo e algoritmo é, em si mesmo, uma caixa de múltiplas crenças. As visões de mundo que os principais líderes da tecnologia compartilham (praticamente todos aglutinados na Califórnia, e de mesmo perfil: jovens brancos, do norte global, multimilionários) incidem em cada “usuário” que está presente nas redes sociais hegemônicas.
Daí a tese da descolonialidade, ululando a urgência de incluir, no topo do debate, a pauta da colonização tecnológica — porque essa não é nem a mais recente e é, com certeza, a mais predominante atualmente, a de domínio mais sofisticado e silencioso. Basta se perguntar: quantos de nós, ao pensarmos em descolonizar o imaginário, abarca a questão da colonização tecnológica; de que uma rede social e um algoritmo nunca são instrumentos amorais, apolíticos; de que as tecnologias, vindas de onde vem, realizações de mentes que sabemos quais, são instrumentos de uma nova, complexa e engenhosa colonização que, agora, vivem em nossos bolsos e passam a noite embaixo de nossos travesseiros?
2. Com a atual teoria descolonial, os antigos paradigmas da colonização são enxotados pela porta da frente; e, pelas janelas escancaradas, novas colonizações, quase todas de cunho tecnológico, invadem o lar e, sem enfrentar resistência, se acomodam nos melhores assentos, e assim as servimos com pão e café.
3. A injusta conformação sobre o domínio das tecnologias na vida das populações: sabemos e experimentamos o seu mal, temos consciência sobre sua intrusão nos aspectos mais íntimos da vida comum. Sabemos, experimentamos, construímos a denúncia; e, apesar de tudo, há um hiato denso que divide nossa consciência crítica do boicote, da recusa, do abandono. Exemplo simples: tal rede social, tenho certeza, arruína minha atenção, aumenta minha ansiedade e oscila minha autoestima. No entanto, sequer sou capaz de imaginar meu dia a dia sem sua presença ostensiva. Via de mão dupla: carcomido por ela e faminto por ela. E o mais estarrecedor: consciente de todo o processo; perene, às vezes zumbi, dessa injusta conformação.
4. Ter disposição e perseverança suficientes para assumir, daqui a alguns anos, sobre o frenesi das tecnologias de consumo: “Parei em 2018. Sigo usando meu velho notebook, de dez anos atrás. Meu smartphone é qualquer um; comprei usado”. Ante a internet das coisas, que promete digitalizar os lares, fazer dos eletrodomésticos secretárias falantes e responsivas, poder dizer: “Minha casa segue analógica”.
Tudo isso porque agora, em mim, uma forte constatação ressoa: uma antropofagia tecnológica é necessária. Deglutir a técnica do colonizador, devolver outra, até que se crie uma nova, própria, com a marca da nossa visão de mundo. Porém, fundamentalmente, antes do gesto antropofágico, um considerável grau de renúncia é necessário. Renúncia que, em última instância, pretende não se curvar ao frenesi, não ser arrastado pelo turbilhão medonho do desenvolvimento tecnocientífico.
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Felipe Moreno
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