Quando somos assombro e só
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§ Existem cosmogonias (gnóstico antigos, por exemplo) que encarnam a visão radical do dualismo da vida e, mais explicitamente, rejeitam a ordem terrena, pois a consideram inferior, ou fruto do erro, ou advinda do mal. Mesmo o budismo, ao qual sou afeito, mas cuja matriz metafísica é um ascetismo indiano desconfiado da Terra, evoca, nas ideias de samsara (fluxo de nascimento e morte que deve ser interrompido), uma percepção da vida fenomênica como experiência cármica, efeito de uma ignorância primordial.
Porque amo a Terra de um jeito insolúvel, num grau incontido, sempre tive repulsa a toda e qualquer pista teleológica que encerra o mundo como dimensão inferior. Mas só repugno o dualismo porque, no fundo, considero sua veracidade — e, ao considerar, me entristeço. Em outras palavras, acho Buda mais sábio que Nietzsche e, embora eu seja, hoje, mais budista que nietzschiano, acho mais bela a cosmovisão nietzschana, no seu dizer sim à vida, no seu amor pelo destino — um destino terreno.
Meu aliado espiritual, menos teórico e mais prático, mais experimental do que conjectural, é a tragédia do ecocídio. A ruína da estabilidade e do esplendor do mundo natural, este que nos provê o alimento, o sol e a saúde para atingir qualquer estágio de sabedoria, vem provar que a Terra é teia cósmica, dimensão mística a qual devemos não apenas cuidado, mas louvor. O ecocídio rebaixa nossas presunções espirituais e nos recoloca no presente do mundo, em exercício de cooperação e humildade — gestos mais solidamente espirituais do que os saltos para qualquer além superior.
§ Quase cinco da tarde, saio da livraria da universidade e me deparo com este pôr do sol escancarado, torrente de luz morna neste inverno preocupante porque quente, cada vez mais quente. Na livraria, descobri Anne Carson. Num dos seus ensaios, a autora discute Simone Weil e sua ideia obsessiva, neurótica, às raias da intransigência, de se livrar do eu para abrir espaço para deus, devolver a deus o eu que ele nos deu e que, no entanto, é sombra e ilusão, engano, parede que impede a penetração do Ser em nós.
Sempre que me deparo com uma literatura de veia hermética e mística, de tom agressivo, decidida a resolver o problema do eu frente ao supremo, me aborreço e sobrepujo minha neurose sobre a neurose de uma Simone Weil: o problema do eu e da necessidade de nos livrarmos dele parece tão real quanto abstrata, urgente ao passo que absurda.
Adentro a angústia e minha consciência trava na incógnita: o que é, substancialmente, fisicamente, livrar-se do eu? Devo sempre voltar à origem do problema: que é esse meu martírio de implicar tanto com essa questão, feito um louco ou um místico que não sou?
O pôr do sol escancarado, o sol morrendo por hoje. Vejo ele cair atrás do morro. Minha boca seca e semiaberta. Eu sei, sinto, que, nesse sol e nessa cena, minha neurose é eclipsada. Até que eu volte os olhos à linguagem. Cena estética; e, além do mais, sem a estética, seja ela da natureza ou da cultura, nunca me encontrei sem o eu. Com ela, sei não ser por alguns segundos. É tudo que posso.
§ O aficionado por livros é o atormentado pelo desconhecido. Quem devora mil obras ou constrói uma biblioteca em casa pretende, violentamente, penetrar o enigma. Abre-se um livro com a pretensão de retirar — em vão — o véu da vida.
§ Não há um único dia em que eu não tenha o impulso de investigar este mundo terrível e sagrado, terrível e sagrado em mesma medida, terrível e sagrado a se misturar. (Na janela de um apartamento em Santos, azul lá fora, Eu e as flores, de Nelson Cavaquinho, tocando no celular.)
§ Fora do silêncio primordial, coisas existem. Ou no interior desse silêncio uno. Coisas existem e eu nunca vou saber por quê. Embora nunca me liberte da sede de perguntar: por que as coisas existem? O espanto, o assombro diante dos olhos, da boca dos místicos para o místico que não há em mim. Retesado no nível do assombro, não tombo nem me elevo, mas me estico, me estico. Até que o que sou está na coisa que vejo. E o que somos? Somos só assombro, na linha difusa entre o delírio e o satori.
assombro, assombro
céu pálido, aves, galhos —
porque a vida é assim?
§ Se o contentamento pela vida não for resultado da travessia de algum deserto, silêncio, pés no solo áspero do mundo; se não ser fruto de algumas privações, pura simplicidade, densa sobriedade, monótona atenção ao presente, então não se trata de contentamento pela vida, mas grosso prazer, espasmo da pele, excitação sem comunicação, só mais uma forma de perturbação dos sentidos. O berço do contentamento é algum deserto.
Não queria esse desamparo e esse tédio; não queria essa desolação. Mas fugir desse lugar é fugir à mentira — uma mentira encantada apenas nas primeiras horas. O escape do desconforto e da dor como armadilha; o enfrentamento sereno de ambos como o próprio contentamento. Não há contentamento sem deserto e não há espiritualidade sem buraco.
§ Encarnar o cotidiano, não sufocar a dúvida, rasgar-se na paisagem. Rasgar-se no cotidiano encarnado pela paisagem não sufocada pela dúvida. Não sufocar a paisagem, encarnar a dúvida cotidiana até se rasgar.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #61
Felipe Moreno
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