Porção de lampejos incisivos e desconexos

§ No sonho desta noite, mais uma vez eu fugia da perseguição, corria da morte. Estava em vias de ser assassinado a tiros por policiais. Cansado de me esconder, já havia aceitado o destino. No momento derradeiro, porém, me revoltei: não podia morrer daquela forma, não queria. Ágil como um felino no instante do bote, me esquivei, pulei um muro, caí em ruas desertas e escuras e, à la Forrest Gump, corri, sem ponto de chegada. A fuga significava, além da luta contra a injustiça de ser executado pelo fogo de um capanga facínora, minha recusa em morrer.
De dia, consciente, é muito mais simples e fácil pensar, dizer e escrever o quão estou conformado sobre minha própria morte: o corpo, neste momento, está apaziguado, confortável em uma cadeira, não sofre qualquer ameaça, não dispara nenhum pulso de adrenalina; a léguas de distância da sensação da vida acabar, pode se dar ao luxo de afirmar que não terá medo no momento em que a vida acabar. Em compensação, o inconsciente, na alta madrugada, libera seus temores e tremores: na selva densa e escura do inconsciente, experimento o instinto primata: morrer é inaceitável; sobrevivo a qualquer custo.
§ Na frente do espelho, elogio o belo corpo que tenho e sinto prazer em tê-lo. No entanto, não viro as costas ao objeto que reflete meu agrado sem antes constatar a totalidade do que é este corpo no tempo: um corpo que decai, dia após dia; que se tornará flácido, fraco, ressequido; que, por fim, estará sob a terra, frígido, banquete de parasitas.
§ Que eu possa ser, na hora da morte, aquilo que tenho me esforçado para ser em vida: são e presente.
§ Todos esses ascetas do velho Oriente, que renunciaram até ao mais inocente capricho dos sentidos, e viveram uma vida tesa, dura, mortificada para qualquer impulso exceto o do próprio ascetismo, cuja finalidade é a libertação deste mundo: o que foram senão seres neuróticos, enfermos por uma ideia de absoluto, flagelados da alma em razão do próprio ardor de purificar a alma? Importante ressaltar que eram todos homens. Portanto, um coletivo de machos que, por considerar qualquer fluxo da matéria uma tenebrosa tentação, sofria uma espécie de síndrome persecutória metafísica; vivia castigado por uma tal teleologia da fuga exasperada.
Entre o suicida e o asceta, a diferença é que o suicida aciona, deliberadamente, a autoaniquilação que o asceta almeja, mas não pode cometê-la assim, com as próprias mãos, de forma tão brutal. Por isso decide se tornar um morto-vivo de olhos bem abertos, isolado, aferrado à sanha da própria libertação, enquanto abandona o restante do mundo — sobretudo as mulheres — ao relento da suposta perdição.
§ Há muita gente que escreve e, apenas escrevendo, filosofa em alto nível. O contrário não confere: pessoas filósofas, no geral, contentam-se com o mero pensar, sem se responsabilizar pelo capricho da sua veiculação: a escrita, propriamente. Isso explica por que a maioria extrai profundas lições sobre a vida, exercícios do ser, muito mais em Clarice Lispector do que em Heidegger.
§ Requinte da vaidade: envaidecer-se, no íntimo, por aparentar nenhuma vaidade. Serpente que morde a cauda: desviar da vaidade explícita, topar com a vaidade sutil, que, por fazer de conta não ser, é ainda mais substancial. Assumir a prevalência da vaidade sutil, entrar em acordo com ela: sinal de maturidade. Sentir-se maduro: outra vaidade.
§ Nunca aborda ninguém. Não pede informação. Tem pânico de falar em público. Mas sempre sai bem-vestido. A timidez é uma outra forma de vaidade.
§ Uma pessoa que corre e sua. Uma pessoa arqueada sobre um tabuleiro de xadrez. Uma pessoa a cinco segundos da cobrança do pênalti. Uma pessoa, com chave de fenda, que tenta soltar o parafuso emperrado. Uma pessoa sobre a almofada, corpo firme, respirando. Nada mais sério e belo que uma pessoa compenetrada no que está fazendo, não importa o quê.
§ Todo o tempo da minha vida em que desmereci a graça da repetição, a superioridade da repetição. Tentei escapar do ciclo, desfazer a unidade. Mas viver é consentir a repetição. Consentir a repetição até apreciar a inexorável realidade que, nesta vida, tudo se repete, gira, vai e vem. Sabe viver quem se adequa, penetra o fluxo da repetição, sem tédio ou aborrecimento, com diligência e gratitude. Aprender a fazer direito. Fazer e refazer. Aprimorar, reaprender, começar do zero, seguir.
§ Repetir cem vezes aquilo que se faz, até aprender a fazer. Repetir mil vezes aquilo que se faz, até tornar-se aquilo que se faz, enquanto faz. Repetir dez mil vezes aquilo que se faz, e tornar-se aquilo que se faz, em tudo que se faz.
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Felipe Moreno